segunda-feira, 30 de junho de 2008

Maria Alzira Seixo: A FEIRA DOS INSULTOS

Acusações ao Desacordo e CPLP
Desde que a petição Em Defesa da Língua Portuguesa está em linha, e se notou que as assinaturas nela surgiam a um ritmo vertiginoso (média de mil por dia), começaram a chover insultos caluniosos sobre os que apontam erros e incongruências ao Acordo Ortográfico

Puristas, saudosistas, retrógrados, salazaristas, fundamentalistas – são qualificativos com que frequentemente nos mimoseiam, em intenção que não é de afago nem de neutralidade.

Mostra-me a experiência que insultos e calúnias resultam de dois sentimentos: a consciência de interesses pessoais ameaçados ou a vaidade pessoal ferida. Lembro-me de ser caluniada por pessoa amiga que passei a ignorar após uma ofensa documentada, e há poucos anos insultaram-me na imprensa por eu ter criticado a negociata dos livros escolares. Estes casos facilitam-me a consideração da situação presente, quer na ordem ética quer na dos interesses.
Que a análise concludente que os desacordistas têm apresentado sobre o texto do Acordo Ortográfico e suas implicações no futuro da Língua venha ferir a vaidade dos que lhe estão mais ligados, compreende-se. Mas nem são eles quem profere os insultos mais sonantes, pois sabem do que falamos e compreendem a justeza do que dizemos – só não lhes interessa confessá-lo.

Mas há uma terceira razão para os insultos, que é a de não haver argumentos contra os males que denunciamos, e se recorrer portanto a chavões banais de rejeição.

Somos puristas porquê? Recusamos galicismos como «toilete», «enquanto que» ou «griffe»? Anglicismos como «delete» (tão próximo, aliás, do «deleatur», corrente latinismo dos revisores tipográficos), «lobbies» ou «paper» (que não é exactamente a mesma coisa que uma «comunicação»)? Rejeitamos palavras como «mail» ou «surfar»? Nunca dei por isso.
Parece que somos puristas por querermos preservar o travejamento da Língua, de modo a que ela mantenha o seu carácter perante as evoluções que o uso dos falantes lhe vai naturalmente, e socialmente, imprimindo. Mas isso não corresponde a manter uma «pureza», antes a «integridade individualizadora» da Língua que constitui património e modo de ser e existir – tal como uma operação de estética deve restaurar feições em caso de acidente sofrido, ou reparar a usura do tempo que as corroeu, mantendo essa mesma integridade do indivíduo, e não mudando-o em «um outro», que é o que Acordo vai fazer com a Língua.

Somos saudosistas porquê? Porque queremos ressuscitar formas obsoletas de escrever? Nunca vi nenhum desacordista defender tal coisa. Ou porque temos saudades do tempo em que a escola ensinava um Português sólido, que fazia de cada alfabetizado um indivíduo capaz de se exprimir sem erros de gramática (como acontece hoje a muitos membros do Governo e, correntemente, a jornalistas, e até, céus!, a professores), e não tinha havido a necessidade de criar a palavra «iliteracia»? Nem sequer temos saudades de tal tempo, pois, se isso era de facto bom, e dizê-lo não corresponde a saudosismo mas é componente da análise objectiva do passado, era em contrapartida muito mau que nem todos tivessem acesso à alfabetização, e que ela se fizesse com as condicionantes de privação da liberdade e outros bens essenciais à expressão individual.

Somos retrógrados porquê? Avançou-se em alguma coisa na expressão linguística em relação à qual nós pretendamos retroceder? Isso aconteceria se o Acordo Ortográfico consagrasse, no seu texto, uma ortografia que correspondesse a uma evolução da língua praticada pelo uso dos falantes, que são os donos da língua. Se alguém tem dúvidas de que isso existe, pois existe, sim, senhor: a língua tem donos, que somos nós todos, os que a falamos – mas não para a escrever com erros, não para a alterar ao sabor de caprichos, insuficiências ou interesses, mas para nos apropriarmos dela e utilizá-la em comunidade, desse uso comum resultando uma transformação gradual que a enriquecerá ao mesmo tempo que a mantém, em vez de a alterar, isto é, fazer dela literalmente outra. Porque transformar é abrir o «mesmo» ao «outro», permitindo o diálogo e a inter-acção mas mantendo a identidade, ao passo que alterar é fazer com que uma coisa passe a ser outra, isto é, perca a sua identidade.
O que o Acordo faz, ao invés, é introduzir na ortografia alterações que não correspondem ao uso dos falantes, são impostas do exterior (não pelos donos da língua, mas pelos patrões dela, o patrão «antigo e arruinado, com títulos de nobreza europeia», que é o Governo Português, e o patrão «jovem e dominante, com o mundo à sua frente», que é o Governo Brasileiro), alterações essas determinadas por interesses político-económicos conjecturais, que vão fazer da Língua Portuguesa uma algaraviada luso-brasileira imposta a todos (que desconsidera as componentes africana e austral), em vez de aceitar o que desse hibridismo venha a resultar no futuro pela inter-acção social resultante do convívio e das trocas culturais e comerciais, como acontecerá numa efectiva Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Estas, sim, é que são de incentivar em termos político-económicos. Essas, sim, é que seriam passíveis de uma verdadeira reforma ortográfica que consagrasse um uso acontecido. O que o Acordo não é. Está-se a proceder, pois, ao contrário – e por isso os retrógrados, reparem bem! não somos nós.

Somos salazaristas porquê? Porque achamos que, no tempo do Salazar, quem sabia ler e escrever o fazia muito bem? Já esclareci que nenhum de nós tem saudades desse tempo (muitos dos desacordistas nem sequer chegaram a conhecê-lo, para bem deles). Mas, se alguém achar que manifestar apreço pela habilitação para bem ler e bem escrever é ser salazarista, então só posso concluir que o ensino e a prática actuais da Língua Portuguesa vão tão mal que afectam a capacidade de pensar e as premissas mais básicas do raciocínio! Isto, se partirmos do princípio que quem nos ataca está de boa fé, bem entendido – o que é duvidoso, se considerarmos que as pessoas ligadas ao Acordo, nos meios políticos e intelectuais, têm interesses no Brasil, e que muitos dos linguistas e literários dos PALOP fizeram carreiras universitárias com esses simpatizantes e com o Autor do dito, e a eles estão ligados.
Também sabemos que o significado de muitas palavras se alargou, e que o sentido sofre de uma impertinência e frouxidão que faz com que se possa chamar quase tudo a quase todos, com o crescente endeusamento da «opinião» (a qualquer bicho careta é reconhecida legitimidade para expender ideias sobre assuntos especializados, em nome da «democracia», que se esvazia cada vez mais num «vale tudo» de luta livre verbal dominada pelos interesses, pela retórica e pelo exercício indiscriminado do poder). Nestas condições, salazarista pode ser até aquele que viveu no tempo do Salazar – e isso pelo menos eu sou, ai de mim! Mas salazarista, no meu modesto entender, é quem exerce o poder de modo ditatorial, fechado às opiniões dos outros, sem escutar argumentos adversos e impedindo a livre crítica de circular, fechando-se num círculo delimitado pelos interesses de alguns. E foi isto mesmo que aconteceu com a aprovação do Acordo ortográfico, e sucessivas ratificações, não se solicitando a opinião de especialistas, ou, quando tal se fez, sonegando-a e impedindo-a de circular, como aconteceu com o parecer da Associação Portuguesa de Linguística de 2005 ou com a carta do catedrático linguista Ivo de Castro ao Instituto Camões, apenas dois exemplos de opiniões negativas silenciadas – e o parecer de Ivo de Castro tem justamente em conta sobretudo o fosso que o Acordo vai criar nos países da CPLP, pela secundarização de vários deles nesta matéria. Quem são então os salazaristas?!

E somos fundamentalistas porquê? No que me diz respeito, trabalho há duas décadas sobre multiculturalismo (tenho várias publicações na matéria), gabo-me de ter sido a primeira universitária portuguesa a escrever sobre literatura africana, em tempos em que esta disciplina ainda nem existia nas universidades lusas, e quando presidi a uma associação internacional consegui associar aos trabalhos de direcção um israelita e um árabe, e isso em 1991 – os que se lembram desses tempos sabem que tal não era fácil... E ponho-me a cogitar: em que é que serei fundamentalista?
Será por defender os fundamentos da Língua Portuguesa, como defendo valores e ideias fundamentais, o estudo, o trabalho, a seriedade, a competência, a orgânica familiar ou os alicerces de uma casa? Pois defendo! Mas não estudo o tempo inteiro, também me rio, informo-me quanto ao que não sei, e não construí nenhum prédio, nem mantive família regular, nem fiquei ligada a partidos políticos. Sou independente de esquerda, de habitação e de vida pessoal! E integro-me na comunidade, não por interesses nem por facções, mas por dedicação, amor ao ensino, e ética.
E os outros desacordistas, depreender-se-á que defendem fundamentalismos como: se as mulheres muçulmanas usarem o véu em Portugal, as portuguesas deverão recomeçar a usar todas o véu nas igrejas católicas, ou até fora delas, para maior harmonização no vestuário, facilitação do pronto-a-vestir e glória e expansão económica dos nossos têxteis?
Haja Deus! Allah hu Acbar!

Concluo: efectivamente, quando não há argumentos, atiram-se nomes feios; e quando não convém dialogar com razões evidentes, atira-se-lhes com qualificativos que possam denegrir a intervenção de quem pensa, simulando assim arrumar o caso.
Fico, porém, com uma dúvida. É que algumas das pessoas que procedem desta maneira são inteligentes, e portanto percebem-nos. E é claro que, no fundo, pretendem preservar, neste caso não a Língua, mas as suas próprias alianças, os seus interesses, e em última análise a sua teimosia. Mas, como são inteligentes, também percebem que este tipo de atitude (atirar com nomes feios, ou deixar andar...) só revela o desespero de quem reconhece a fragilidade da posição assumida, e a recusa liminar de entrar no diálogo e reconsiderar a questão. Como é possível? Pensar-se-á, como os absolutistas, que «O Estado sou Eu» e que «Depois de mim, o Dilúvio», perdendo de vista a ideia basilar da existência em comunidade, que é a de atentar no presente tendo em vista a manutenção do futuro?

Maria Alzira Seixo
Presidente da Federação Internacional de Línguas e Literaturas Modernas
(mandato 1999-2002)

2 comentários:

impensado disse...

Até que enfim alguém com o perfil da Autora deste «post» tem a coragem de chamar a atenção para os interesses pessoais «brasílicos» de alguns dos defensores do desacordo.
Tenho ido ver sempre os curriculuns de alguns defensores que estranho que o façam com argumentos tão fraquinhos e até agora lá tenho encontrado sempre o doutoramento «honoris causa» ou as aulas dadas em universalidades brasileiras...

António Emiliano disse...

Gosto muito deste texto de MAS, que em boa hora vem repor alguma ordem e decência neste debate. O epíteto de “fundamentalista da língua” não me incomodaria particularmente (porque considero importante haver fundamento e fundamentos, no discurso científico, na política e até no linguajar quotidiano), não fora a conotação negativa que tem actualmente.
No entanto, quando MAS escreve «Avançou-se em alguma coisa na expressão linguística em relação à qual nós pretendamos retroceder? Isso aconteceria se o Acordo Ortográfico consagrasse, no seu texto, uma ortografia que correspondesse a uma evolução da língua praticada pelo uso dos falantes, que são os donos da língua» não a posso acompanhar totalmente.
A evolução ou mudança das línguas naturais é universal, permanente e contínua, é instrínseca ao existir concreto das línguas. Nas ortografias não se passa o mesmo. São, por natureza e por necessidade, conservadoras. E um dos aspectos mais negativos do montro acordortográfico de ’90 é exactamente o apelo a um “princípio da consagração pelo uso” e um ”princípio fonético” para justificar algumas das mudanças propostas. A ortografia portuguesa europeia, mesmo depois da reforma de 1911, não reflecte directamente nenhuma das mais importantes mudanças fonético-fonológicas que afectaram a língua nos últimos séculos. Não precisa, pois não é transcrição fonética, nem sequer, em alguns aspectos, fonémica.
Não gosto, também, da transliteração proposta para o ‘takbir’: deveria ser, de acordo com as regras internacionais de transliteração do árabe literal, ‘Allahu akbar’, que significa “Deus é grande/supremo.”
De qualquer forma, revejo-me neste texto e nas sua premissas gerais e, tal como MAS, abomino a noção de que há “patrões da língua” e de “uma algaraviada luso-brasileira imposta a todos” que algumas almas pouco doutas e esclarecidas acham que é a “língua portuguesa comum” ou a “Lusofonia”, conceitos que, como linguista, devo acentuar não significam nada de substantivo ou relevante.
Deixemos os cães do acordismo (que assenta objectivamente em perspectivas retrógradas e neo-coloniais) ladrar e sonhar com quimeras lusofónicas hegemónicas e vamos ao trabalho de garantir em Portugal estabilidade ortográfica e qualidade do ensino da língua materna nas escolas.
Saúde!