A actual controversia orthographica remonta á reforma de 1911, a qual teve duas consequencias notaveis e nefastas: no plano da lingua escripta, a physiognomia graphica da lingua portugueza foi profundamente alterada — attente-se no titulo e no primeiro periodo d’este texto graphados em orthographia antiga (que ninguem terá difficuldade em ler); no plano social e político, a ortografia, consignada em texto legal, tornou-se questão de Estado e passou a depender da «sanha legiferante de dicionaristas e parlamentares» (expressão do colunista brasileiro Hélio Schwartsman, Folha Online, www.folha.com.br, 8/6/2007).
Fernando Pessoa — que defendia a unidade ortográfica entre Portugal e o Brasil e considerava o sistema ortográfico antigo «talvez o mais perfeito que se conhece», «obra prima de patriotismo e de humanismo, trabalhado pacientemente por gerações dos nossos maiores, que os castelhanos inconscientes (involuntários) do Governo Provisório se lembram de destruir» — qualificou a reforma de 1911 como acto impatriótico, imoral, impolítico e promulgado ditatorialmente (‘O Problema Ortográfico’, in A Língua Portuguesa, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, p. 24). Sintomaticamente, o único livro de poesia que Pessoa viu publicado em vida, Mensagem (de 1934), obra singular e perfeita da literatura portuguesa, foi impresso na ortografia antiga.
Tal como em 1911, a reforma ortográfica é hoje imposta por decreto e é obra de meia dúzia de personalidades insensíveis ao valor da estabilidade e da continuidade ortográficas num país europeu antigo como Portugal. Ao contrário de hoje, a percentagem de luso-falantes europeus, africanos, macaístas e timores afectados pela reforma de 1911 foi escassa porque era mínima ao tempo a quantidade de cidadãos alfabetizados do império português. Apesar de tudo, a reforma de 1911 foi um acto soberano do Estado português, preocupado com a sua situação interna e os seus legítimos interesses (discorde-se ou não do acto e das suas premissas ideológicas); hoje, ao contrário, a República Portuguesa curva-se perante os ditames e os interesses da República Federativa do Brasil, perseguindo ilusões ridículas de projecção internacional da mítica “língua portuguesa comum” (que, como é sabido, ninguém fala).
Qual o impacto real previsível em Portugal da reforma prevista no Acordo Ortográfico de 1990 [AO]? Nomeadamente, que grupos de falantes e que sectores da sociedade serão mais afectados e de que forma (impacto extensional)? Que incidência efectiva terá a reforma na expressão escrita e oral do português europeu (impacto intensional)? Não se sabe. Ninguém se deu ao trabalho de estudar o assunto.
No entanto, qualquer grande projecto do Estado português, como a construção de um aeroporto internacional ou de uma rede ferroviária de alta velocidade, requere a realização de estudos sectoriais prévios e um estudo de avaliação do impacto ambiental. São empreendimentos que nos afectarão duradouramente a todos, indivíduos e comunidade. Uma nova ortografia para o português europeu é tão importante como essas infra-estruturas. Onde estão os pareceres técnicos de incidência extensional e intensional? Onde está o “estudo de impacto ambiental” da nova “ortografia unificada do português”?
Não foram produzidos estudos nem foram avançados argumentos linguísticos sérios, baseados em dados fiáveis, para justificar os aspectos mais controversos da reforma — que ninguém quer e ninguém pediu fora do espaço rarefeito da diplomacia e das academias —, como a supressão das chamadas consoantes mudas e a consagração da grafia dupla em vários domínios da ortografia.
A Nota Explicativa [NE] do AO diz que «as palavras afectadas por tal supressão representam 0.54% do vocabulário geral da língua, o que é pouco significativo em termos quantitativos» (al. 4). A afirmação ilude o facto de que a verdadeira incidência desta medida só poderá ser aferida a partir do conhecimento da frequência de uso das formas afectadas. Como a própria NE admite, algumas palavras afectadas são de uso muito frequente (acção, factura, óptimo, etc.). A expressão “vocabulário geral da língua” é vaga. Os lexicólogos distinguem entre vocabulários corrente, comum e de especialidade, que têm distintas quantidades absolutas de termos e distintos índices de frequência. Como a “avaliação estatística” [sic] da NE (que é uma simples contagem) foi feita a partir de uma misteriosa lista de 110.000 palavras, o impacto desta mudança no vocabulário geral e nos vocabulários parcelares e sectoriais em uso na sociedade portuguesa é desconhecido. Logo, o argumento da baixa quantidade de palavras afectadas não colhe.
Outro argumento falacioso da NE é o de que a supressão facilita a aprendizagem. Ora, nenhuma ortografia é concebida em função dos aprendentes: desde que a ortografia seja bem ensinada, para uma criança de 6 - 7 anos (com reduzida consciência fonológica) é indiferente aprender aspecto com ou sem C ou adoptar com ou sem P. A escrita não é transcrição fonética e ler não é soletrar, é reconhecer palavras e sequências de palavras e delas extrair significado.
A admissão da dupla grafia num número elevadíssimo de casos comprova a impossibilidade real da unidade ortográfica entre Portugal e Brasil e mina o fundamento de qualquer escrita normalizada e codificada. Com facultatividades gráficas não há ORTO-grafia.
É preocupante a insensibilidade dos promotores do AO aos valores de património, estabilidade e continuidade ortográficas em Portugal. Nas escolas, a instabilidade e insegurança ortográficas que inevitavelmente se instalarão terão efeito cumulativo com outras pragas (como a TLEBS) que assolam o nosso depauperado sistema educativo.
A propósito de insensibilidade (e insensatez), Fernando Cristóvão, um dos negociadores portugueses do Acordo Ortográfico e fervoroso defensor do indefensável, escreveu no Dia da Liberdade no semanário Expresso (Actual, 25/04/2008), a poucas semanas da discussão do Acordo no Parlamento esta coisa espantosa: «a Albânia, a Turquia e o Vietname, trocaram os seus alfabetos pelo latino, deixando, respectivamente, os seus caracteres gregos, árabes e chineses, sem que as suas culturas sofressem com tão radical mudança.»
Será mesmo assim? De que informação rigorosa sobre a matéria disporá este acérrimo acordista? E será este o referencial adequado — a comparação com países como a Albânia, a Turquia e o Vietname — para se discutir a questão ortográfica nacional e a política linguística de Portugal (nação com oito séculos de autonomia política e com longo e denso lastro literário e cultural)? Não será que tal mudança impossibilitou de forma súbita e irreversível aos albaneses, turcos e vietnamitas o acesso à sua tradição textual e cultural, a qual é agora domínio exclusivo de especialistas e académicos (muitos dos quais estrangeiros)?
Alguém imagina a Grécia, a Rússia ou o Japão a abandonar os seus ancestrais sistemas de escrita? Alguém imagina, nos dias de hoje — com a quantidade imensa de anglófonos e francófonos que há no mundo e com a mole incomensurável de documentos (públicos e privados) e publicações produzida diariamente em inglês e francês — alguém imagina, dizia, países europeus como o Reino Unido e a França a procederem a mudanças ortográficas radicais? Alguém imagina o Reino Unido e a França — países caracterizados por uma enorme diversidade linguística interna — a embarcarem em reformas ortográficas por pressão de outros países (desenvolvidos ou não)?
Se temos (?) que nos comparar com outros, não seria preferível fazê- lo com nações ciosas da sua herança cultural?
Se temos (?) de estabelecer uma bitola para o nosso desenvolvimento cultural, não seria mais adequado olharmos para o exemplo de outras nações antigas possuidoras de património cultural longevo?
António Emiliano | Linguista e filólogo | Universidade Nova de Lisboa
(excertos do opúsculo Foi você que pediu um acordo ortográfico?, Lisboa, Guimarães Editores, 2008, lançado em 13 de Maio no Grémio Literário de Lisboa, com apresentação de Paulo Teixeira Pinto — em simultâneo com livro de Vasco Graça Moura, Acordo Ortográfico: A Perspectiva do Desastre, Lisboa, Alêtheia Editores, 2008 —, e publicados em forma condensada como artigo de opinião no caderno Actual do semanário Expresso de 03/05/2008)
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