segunda-feira, 30 de junho de 2008

Maria Alzira Seixo: A FEIRA DOS INSULTOS

Acusações ao Desacordo e CPLP
Desde que a petição Em Defesa da Língua Portuguesa está em linha, e se notou que as assinaturas nela surgiam a um ritmo vertiginoso (média de mil por dia), começaram a chover insultos caluniosos sobre os que apontam erros e incongruências ao Acordo Ortográfico

Puristas, saudosistas, retrógrados, salazaristas, fundamentalistas – são qualificativos com que frequentemente nos mimoseiam, em intenção que não é de afago nem de neutralidade.

Mostra-me a experiência que insultos e calúnias resultam de dois sentimentos: a consciência de interesses pessoais ameaçados ou a vaidade pessoal ferida. Lembro-me de ser caluniada por pessoa amiga que passei a ignorar após uma ofensa documentada, e há poucos anos insultaram-me na imprensa por eu ter criticado a negociata dos livros escolares. Estes casos facilitam-me a consideração da situação presente, quer na ordem ética quer na dos interesses.
Que a análise concludente que os desacordistas têm apresentado sobre o texto do Acordo Ortográfico e suas implicações no futuro da Língua venha ferir a vaidade dos que lhe estão mais ligados, compreende-se. Mas nem são eles quem profere os insultos mais sonantes, pois sabem do que falamos e compreendem a justeza do que dizemos – só não lhes interessa confessá-lo.

Mas há uma terceira razão para os insultos, que é a de não haver argumentos contra os males que denunciamos, e se recorrer portanto a chavões banais de rejeição.

Somos puristas porquê? Recusamos galicismos como «toilete», «enquanto que» ou «griffe»? Anglicismos como «delete» (tão próximo, aliás, do «deleatur», corrente latinismo dos revisores tipográficos), «lobbies» ou «paper» (que não é exactamente a mesma coisa que uma «comunicação»)? Rejeitamos palavras como «mail» ou «surfar»? Nunca dei por isso.
Parece que somos puristas por querermos preservar o travejamento da Língua, de modo a que ela mantenha o seu carácter perante as evoluções que o uso dos falantes lhe vai naturalmente, e socialmente, imprimindo. Mas isso não corresponde a manter uma «pureza», antes a «integridade individualizadora» da Língua que constitui património e modo de ser e existir – tal como uma operação de estética deve restaurar feições em caso de acidente sofrido, ou reparar a usura do tempo que as corroeu, mantendo essa mesma integridade do indivíduo, e não mudando-o em «um outro», que é o que Acordo vai fazer com a Língua.

Somos saudosistas porquê? Porque queremos ressuscitar formas obsoletas de escrever? Nunca vi nenhum desacordista defender tal coisa. Ou porque temos saudades do tempo em que a escola ensinava um Português sólido, que fazia de cada alfabetizado um indivíduo capaz de se exprimir sem erros de gramática (como acontece hoje a muitos membros do Governo e, correntemente, a jornalistas, e até, céus!, a professores), e não tinha havido a necessidade de criar a palavra «iliteracia»? Nem sequer temos saudades de tal tempo, pois, se isso era de facto bom, e dizê-lo não corresponde a saudosismo mas é componente da análise objectiva do passado, era em contrapartida muito mau que nem todos tivessem acesso à alfabetização, e que ela se fizesse com as condicionantes de privação da liberdade e outros bens essenciais à expressão individual.

Somos retrógrados porquê? Avançou-se em alguma coisa na expressão linguística em relação à qual nós pretendamos retroceder? Isso aconteceria se o Acordo Ortográfico consagrasse, no seu texto, uma ortografia que correspondesse a uma evolução da língua praticada pelo uso dos falantes, que são os donos da língua. Se alguém tem dúvidas de que isso existe, pois existe, sim, senhor: a língua tem donos, que somos nós todos, os que a falamos – mas não para a escrever com erros, não para a alterar ao sabor de caprichos, insuficiências ou interesses, mas para nos apropriarmos dela e utilizá-la em comunidade, desse uso comum resultando uma transformação gradual que a enriquecerá ao mesmo tempo que a mantém, em vez de a alterar, isto é, fazer dela literalmente outra. Porque transformar é abrir o «mesmo» ao «outro», permitindo o diálogo e a inter-acção mas mantendo a identidade, ao passo que alterar é fazer com que uma coisa passe a ser outra, isto é, perca a sua identidade.
O que o Acordo faz, ao invés, é introduzir na ortografia alterações que não correspondem ao uso dos falantes, são impostas do exterior (não pelos donos da língua, mas pelos patrões dela, o patrão «antigo e arruinado, com títulos de nobreza europeia», que é o Governo Português, e o patrão «jovem e dominante, com o mundo à sua frente», que é o Governo Brasileiro), alterações essas determinadas por interesses político-económicos conjecturais, que vão fazer da Língua Portuguesa uma algaraviada luso-brasileira imposta a todos (que desconsidera as componentes africana e austral), em vez de aceitar o que desse hibridismo venha a resultar no futuro pela inter-acção social resultante do convívio e das trocas culturais e comerciais, como acontecerá numa efectiva Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Estas, sim, é que são de incentivar em termos político-económicos. Essas, sim, é que seriam passíveis de uma verdadeira reforma ortográfica que consagrasse um uso acontecido. O que o Acordo não é. Está-se a proceder, pois, ao contrário – e por isso os retrógrados, reparem bem! não somos nós.

Somos salazaristas porquê? Porque achamos que, no tempo do Salazar, quem sabia ler e escrever o fazia muito bem? Já esclareci que nenhum de nós tem saudades desse tempo (muitos dos desacordistas nem sequer chegaram a conhecê-lo, para bem deles). Mas, se alguém achar que manifestar apreço pela habilitação para bem ler e bem escrever é ser salazarista, então só posso concluir que o ensino e a prática actuais da Língua Portuguesa vão tão mal que afectam a capacidade de pensar e as premissas mais básicas do raciocínio! Isto, se partirmos do princípio que quem nos ataca está de boa fé, bem entendido – o que é duvidoso, se considerarmos que as pessoas ligadas ao Acordo, nos meios políticos e intelectuais, têm interesses no Brasil, e que muitos dos linguistas e literários dos PALOP fizeram carreiras universitárias com esses simpatizantes e com o Autor do dito, e a eles estão ligados.
Também sabemos que o significado de muitas palavras se alargou, e que o sentido sofre de uma impertinência e frouxidão que faz com que se possa chamar quase tudo a quase todos, com o crescente endeusamento da «opinião» (a qualquer bicho careta é reconhecida legitimidade para expender ideias sobre assuntos especializados, em nome da «democracia», que se esvazia cada vez mais num «vale tudo» de luta livre verbal dominada pelos interesses, pela retórica e pelo exercício indiscriminado do poder). Nestas condições, salazarista pode ser até aquele que viveu no tempo do Salazar – e isso pelo menos eu sou, ai de mim! Mas salazarista, no meu modesto entender, é quem exerce o poder de modo ditatorial, fechado às opiniões dos outros, sem escutar argumentos adversos e impedindo a livre crítica de circular, fechando-se num círculo delimitado pelos interesses de alguns. E foi isto mesmo que aconteceu com a aprovação do Acordo ortográfico, e sucessivas ratificações, não se solicitando a opinião de especialistas, ou, quando tal se fez, sonegando-a e impedindo-a de circular, como aconteceu com o parecer da Associação Portuguesa de Linguística de 2005 ou com a carta do catedrático linguista Ivo de Castro ao Instituto Camões, apenas dois exemplos de opiniões negativas silenciadas – e o parecer de Ivo de Castro tem justamente em conta sobretudo o fosso que o Acordo vai criar nos países da CPLP, pela secundarização de vários deles nesta matéria. Quem são então os salazaristas?!

E somos fundamentalistas porquê? No que me diz respeito, trabalho há duas décadas sobre multiculturalismo (tenho várias publicações na matéria), gabo-me de ter sido a primeira universitária portuguesa a escrever sobre literatura africana, em tempos em que esta disciplina ainda nem existia nas universidades lusas, e quando presidi a uma associação internacional consegui associar aos trabalhos de direcção um israelita e um árabe, e isso em 1991 – os que se lembram desses tempos sabem que tal não era fácil... E ponho-me a cogitar: em que é que serei fundamentalista?
Será por defender os fundamentos da Língua Portuguesa, como defendo valores e ideias fundamentais, o estudo, o trabalho, a seriedade, a competência, a orgânica familiar ou os alicerces de uma casa? Pois defendo! Mas não estudo o tempo inteiro, também me rio, informo-me quanto ao que não sei, e não construí nenhum prédio, nem mantive família regular, nem fiquei ligada a partidos políticos. Sou independente de esquerda, de habitação e de vida pessoal! E integro-me na comunidade, não por interesses nem por facções, mas por dedicação, amor ao ensino, e ética.
E os outros desacordistas, depreender-se-á que defendem fundamentalismos como: se as mulheres muçulmanas usarem o véu em Portugal, as portuguesas deverão recomeçar a usar todas o véu nas igrejas católicas, ou até fora delas, para maior harmonização no vestuário, facilitação do pronto-a-vestir e glória e expansão económica dos nossos têxteis?
Haja Deus! Allah hu Acbar!

Concluo: efectivamente, quando não há argumentos, atiram-se nomes feios; e quando não convém dialogar com razões evidentes, atira-se-lhes com qualificativos que possam denegrir a intervenção de quem pensa, simulando assim arrumar o caso.
Fico, porém, com uma dúvida. É que algumas das pessoas que procedem desta maneira são inteligentes, e portanto percebem-nos. E é claro que, no fundo, pretendem preservar, neste caso não a Língua, mas as suas próprias alianças, os seus interesses, e em última análise a sua teimosia. Mas, como são inteligentes, também percebem que este tipo de atitude (atirar com nomes feios, ou deixar andar...) só revela o desespero de quem reconhece a fragilidade da posição assumida, e a recusa liminar de entrar no diálogo e reconsiderar a questão. Como é possível? Pensar-se-á, como os absolutistas, que «O Estado sou Eu» e que «Depois de mim, o Dilúvio», perdendo de vista a ideia basilar da existência em comunidade, que é a de atentar no presente tendo em vista a manutenção do futuro?

Maria Alzira Seixo
Presidente da Federação Internacional de Línguas e Literaturas Modernas
(mandato 1999-2002)

sábado, 28 de junho de 2008

Petição contra o Acordo Ortográfico ultrapassa 75 000 subscritores


A Petição MANIFESTO EM DEFESA DA LÍNGUA PORTUGUESA CONTRA O ACORDO ORTOGRÁFICO, que está em linha desde 2/5/2008, ultrapassou ontem 27/6/2008 as 75 000 assinaturas.

A petição manter-se-á em linha por tempo indeterminado, para permitir que o maior número possível de cidadãos manifeste o seu descontentamento e indignação perante o crime de lesa cultura e lesa língua que é o Acordo Ortográfico de 1990.
A petição aguarda na Assembleia da República apreciação pelo Plenário, nos termos da lei, tendo a sua publicação em Diário da República sido já requerida pelo 1.º signatário, Vasco Graça Moura (ver requerimento).
A petição foi entregue em 2/6/2008 a Sua Excelência o Presidente da República, em audiência concedida a um grupo de signatários, os quais fizeram entrega também de um conjunto de pareceres técnicos (alguns dos quais inéditos) sobre o Acordo Ortográfico, disponíveis neste blog em documentos.

Os signatários da petição apelam à participação de todos os cidadãos neste movimento cívico e apartidário:

Caro Concidadão, isto não vai ficar assim.
Estas 75 000 vozes serão ouvidas.
75 000 assinaturas, nos termos da proposta recente do partido do governo sobre o número mínimo de militantes requeridos para a existência legal de um partido político, equivalem à fundação de 15 partidos políticos. Nas eleições directas do PS de 2004 votaram cerca de 36 000 militantes inscritos, dos quais cerca de 28 000 votaram no actual Primeiro-Ministro. Nas eleições directas do PSD de 2008 votaram cerca de 45 400 militantes, dos quais cerca de 17 000 votaram na actual Presidente do partido.
Se os votos de 45 000 cidadãos portugueses (28 000 em Sócrates e 17 000 em Ferreira Leite) são suficientes para escolher o futuro 1.º Ministro de Portugal, 75 000 assinaturas deveriam mais do que suficientes para parar este Acordo desastroso, que ninguém pediu e de que ninguém precisa, e que só alguns académicos e políticos irresponsáveis querem.

Diga Acordo NÃO!
Assine e divulgue a Petição!

ENQUANTO HÁ LÍNGUA HÁ ESPERANÇA.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Obrigatoriamente facultativo: como explicar o inexplicável caos desacordortográfico?

Alguém por favor explique como se vai ensinar uma criança a escrever com a ortografia unificada do português (é assim que o Acordo Ortográfico lhe chama). Alguém por favor explique como uma criança que já saiba escrever e que seja apanhada entre ortografias vai conseguir lidar com a insanidade acordortográfica a meio do seu percurso escolar. Alguém por favor explique como se vai transmitir as noções cruciais de correcção e erro a um aprendente jovem da escrita.

Explico o meu problema. Quero perceber a razão de coisas deste tipo, quero saber como se explicam estas inexplicabilidades:

COR-DE-ROSA escreve-se com hífen, por causa da consagração pelo uso, diz o AO, mas COR DE LARANJA escreve-se sem hífen, porque não.

Que tem o uso a ver com ortografia? Se algumas pessoas passarem a conduzir sistematicamente pela esquerda ou a passar sinais vermelhos, algum decisor pensará em consagrar e permitir tais práticas como uso, em vez de manter a sua proibição como violações que são de um código em vigor?

Quantas vezes será preciso escrever mal até que os erros passem a ser “formas consagradas pelo uso”?

Como explicar a um miúdo de 12 anos que o seu uso na escrita quotidiana de sms ou de mensagens no MSN (ou similar) não consagra nada, apesar de o AO aceitar a supressão de H inicial quando consagrada pelo uso? Pelo uso de quem e onde?

Como se explica a acentuação em coisas como as que se seguem?

PÁRA (verbo) deixa OBRIGATORIAMENTE de ter acento e escrever-se-á PARA, não se distinguindo da preposição PARA.

Mas PÔR (verbo) mantém OBRIGATORIAMENTE acento para se distinguir da preposição POR.

PODE (pretérito perfeito) tem FACULTATIVAMENTE acento (PÔDE) para se distinguir de PODE (presente do indicativo).

FORMA (substantivo) tem FACULTATIVAMENTE acento (FÔRMA) para se distinguir de FORMA (verbo e substantivo).

Mas ACORDO, ACERTO, CERCA, etc. (substantivos) OBRIGATORIAMENTE não têm acento e não se distinguem de ACORDO, ACERTO, CERCA, etc. (verbos).

DEMOS (presente do conjuntivo) tem FACULTATIVAMENTE acento (DÊMOS) para se distinguir de DEMOS (pretérito perfeito).

Mas PODEMOS (presente do indicativo) OBRIGATORIAMENTE não tem acento e não se distingue da forma PUDEMOS (pretérito perfeito).

E as formas com acentuação facultativa que o AO contempla AVERÍGUO, AVERÍGUAS, AVERÍGUA, ENXÁGUO, ENXÁGUAS, ENXÁGUA, DELÍNQUO, DELÍNQUES, DELÍNQUE, etc. dos verbos AVERIGUAR, ENXAGUAR, DELINQUIR? De que língua são? O que as distingue de certas formas incorrectas, muito correntes em Portugal, como FÁÇAMOS, PÓSSAMOS, TÊNHAMOS e SUPÔNHAMOS? E por que é que estas últimas não são então formas consagradas pelo uso?

Qual é a regra?

O que impedirá a mente criativa de crianças em idade escolar de gerar abdutivamente formas gráficas que nem a nova ortografia xenófila contempla? Os que as impede de FACULTATIVAMENTE introduzirem acentos circunflexos em palavras com Ê e Ô tónicos, se a nova ortografia unificada se baseia no princípio fonético, na consagração pelo uso e na facultatividade?

Como perceber o que é facultativo e o que é obrigatório? Como entender o que se mantém para distinguir e o que se não mantém apesar de distinguir? Como é que confusões destas contribuem para simplificar a ortografia portuguesa, outro princípio peregrino do acordismo?

RACIONAMOS (pretérito perfeito) tem FACULTATIVAMENTE acento para se distinguir de RACIONAMOS (presente do indicativo). A vogal pré-tónica escrita A (o primeiro A) é fechada (na realidade, média).

FRACIONAMOS (pretérito) tem FACULTATIVAMENTE acento para se distinguir de FRACIONAMOS (presente). Tem também FACULTATIVAMENTE um C mudo — FRACCIONÁMOS ou FRACCIONAMOS (quatro formas correctas no total). Porquê? Porque no Brasil a consoante é pronunciada. Como no Brasil se escreve com C nós podemos escrever com C. E a vogal pré-tónica escrita A é aberta.

ACIONAMOS (pretérito) tem FACULTATIVAMENTE acento para se distinguir de ACIONAMOS (presente). OBRIGATORIAMENTE não tem um C mudo — ACCIONÁMOS ou ACCIONAMOS são erros ortográficos. Porquê? Porque no Brasil a consoante não é pronunciada: como no Brasil se escreve sem C em Portugal não se pode continuar a escrever com C. E a vogal pré-tónica escrita A também é aberta.

Se é possível escrever DECEÇÃO e RECEÇÃO com um P mudo FACULTATIVAMENTE — porquê? porque no Brasil se escreve com P — o que impedirá jovens estudantes de criarem formas analógicas como CORREPÇÃO ou INTERSEPÇÃO com P mudo, já que as formas actuais CORRECÇÃO e INTERSECÇÃO perdem OBRIGATORIAMENTE o C mudo e passam a ser erros ortográficos?

Repare-se que DECEÇÃO passa a ter um P mudo facultativo, não porque a letra E se pronuncie com vogal aberta (isso não tem importância nenhuma para os autores do Acordo, como eles próprios dizem — está escrito na Nota Explicativa do AO), mas porque no Brasil se escreve com P.

Ou seja, o meu P mudo, que até agora era euro-afro-asiático-oceânico e servia para indicar o timbre da vogal precedente, passará a ser brasileiro, e é por ser brasileiro e por não ser mudo na norma culta brasileira que eu vou poder continuar a escrevê-lo muda e ortograficamente em Portugal.

Alguém consegue explicar isto a miúdos de 10-12 anos apanhados entre ortografias?

Para sabermos escrever bem em Portugal teremos de saber como se escreve bem no Brasil. Isto fará algum sentido para uma criança ou jovem em idade escolar ou para algum professor?

Alguém explique por favor como será um manual escolar unificado.

Haverá listas de formas com consoantes mudas facultativas e listas de formas com consoantes mudas proibidas?
Com hífenes consagrados pelo uso e hífenes proibidos?
Com acentos facultativos, obrigatórios e proibidos?

Terá de haver, forçosamente, pois não há discernivelmente regras que iluminem o uso da nova ortografia. Os professores, enquanto não conseguirem decorar essas listas, terão de andar sempre com elas debaixo do braço nas aulas e na correpção dos testes dos alunos.

Uma alternativa é o sábio conselho dos U2 de há quinze anos, nos tempos do Zooropa Tour: “WATCH MORE TV”. Ou seja, veja mais telenovelas brasileiras e aprenda português.

Os professores poderão FACULTATIVAMENTE ensinar as grafias que preferem? Cada professor e cada aluno escolherá a forma correpta que mais lhe agradar? Ou será por ano, ou por escola, ou por distrito?

E quando um professor fundamentalista que escreve Ps mudos (autorizados pela norma culta brasileira, bem entendido) faltar e for substituído por um professor fonético que não escreve Ps mudos? Muda a ortografia nesse dia na sala de aula?

E os encarregados de educação como farão para esclarecer os menores a seu cargo e os acompanhar nos seus estudos de português?

Aprender a escrever e a ler (que já agora, são coisas que o cérebro aprende separadamente) é uma tarefa portentosa e difícil, que requere a aquisição de hábitos, rotinas, regras, disciplina, repetição. Reiteração contínua de padrões, comportamentos e usos. Como se aprende sem estabilidade no processo de aprendizagem?

Quantas revisões da ortografia unificada se avizinham nos próximos anos para maximizar o princípio fonético, acompanhar o uso e unificar mais a acordortografia unificada?

Como foi possível chegar-se a este ponto em que se tem que explicar o obviamente inexplicável, e em que o obviamente inargumentável tem que ser argumentado ?

Que processo de involução cultural se abateu sobre nós que nos trouxe a esta conjuntura bizarra, em que o absurdo evidente do AO é que tem que ser explicado e demonstrado (como se não fosse evidente) e a sua não aplicação é que tem que ser justificada (como se ninguém percebesse o desastre que é)?

O colunista brasileiro Hélio Schwartsman escreveu sobre o AO, “quanto mais penso, mais fico revoltado. Toda a situação pode ser resumida como um conluio entre acadêmicos espertos e parlamentares obtusos.”

Não me satisfaz completamente, não explica tudo, mas faz algum sentido. É, pelo menos, um fragmento de explicação.

António Emiliano | Linguista e filólogo | Universidade Nova de Lisboa
publicado in Jornal de Notícias | 13/7/2008




sexta-feira, 20 de junho de 2008

Acordo Ortográfico: o Tratado de Tordesilhas revisitado

Reúno aqui alguns dos pontos que, a meu ver, sumariam as gravíssimas condições, substanciais e processuais, que configuraram o presente Acordo Ortográfico (AO), remetendo para os inúmeros pareceres mais técnicos e aprofundados a análise pormenorizada das discrepâncias e erros que manifesta, e com os quais não devemos contemporizar.

A minha posição quer ser a de um cidadão informado e com vontade de reflectir criticamente sobre as informações de que (já) dispõe.

Eis o que me ocorre dizer, neste momento:

1. Reforçar a gravidade da falência da discussão do AO, bem como da sua consubstanciação, em sede própria: a sede científica. Os autores do AO escusaram-se, ao longo dos anos, a uma discussão científica séria, através de uma não-audição sistemática dos parceiros que, em Portugal, têm opinião cientificamente validada sobre a matéria. Tal autismo é contrário a qualquer processo de validação científica, independentemente da área em que ele ocorra.

2. Sublinhar a institucionalização, que este AO realiza, da dupla ou mesmo múltipla grafia (são inúmeros os exemplos, e caricatos os resultados), quer entre as normas de diferentes países, quer dentro da norma de um mesmo país. Este Acordo pode ser um Acordo (e já falarei dos seus equívocos a este respeito), mas não o é certamente pela razão politicamente aduzida, e que seria a de uma necessária (?) unificação ortográfica – mito derrubado pelas múltiplas grafias que oficializa.

3. Recordar algumas consequências: por exemplo a destruição de certas famílias etimológicas (facção/faccioso), com perturbação da inteligibilidade da língua como construção semântica e histórica.

4. Apontar a confusão inaceitável entre língua e ortografia, não se reconhecendo o carácter desnecessário de um acordo que, mesmo que seja apenas ortográfico (e já vimos que não produz a apregoada unificação), não contempla (como não poderia contemplar) nenhum outro plano da língua (morfo-sintáctico e lexemático). Mesmo a feitura de um vocabulário comum, ainda se apenas técnico, nunca poderá vir a sobrepor-se a usos já sistematizados nas diversas variantes. E, a ser implementada tal unificação, ela deixaria de ser “apenas” ortográfica, para começar a ser… linguística. O AO é pois um logro: para existir, precisa de que a ortografia seja APENAS UM dos aspectos abordados. Mais uma vez, a sede para esta discussão é a comunidade científica, que não foi consultada como devia ter sido.

5. Lembrar o profundo desequilíbrio entre custos e benefícios. Aquilo que o AO vai custar, em termos económicos e humanos (sim, também estes), é incalculavelmente mais do que as algumas (e não todas as!) coincidências ortográficas que passará a permitir.

6. A arrogância, roçando o neo-colonialismo, por parte tanto de Portugal como do Brasil, imaginando que um Acordo negociado APENAS entre estes dois países poderia ser conduzido da mesma forma, em 1990 ou 2008, pela qual tinha sido conduzido em 1945 (data do anterior Acordo, firmado por ambos os países mas nunca aplicado no Brasil). Em 1945 havia, para o bem como para o mal, apenas dois poderes soberanos que entre si diziam repartir a língua, qual Tratado de Tordesilhas. Não é esse o caso em 2008. E Portugal já devia ter aprendido alguma coisa com o Tratado de Tordesilhas…

Helena Carvalhão Buescu | Professora Universitária | Universidade de Lisboa

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Afinal, ‘Ensaio sobre a Cegueira’ não é apenas um romance

Num pequeno texto (1) escrito 10 anos depois da assinatura do acordo ortográfico (Portuguese translation: What clients need to know), e que se tornou um clássico entre a comunidade de tradutores portugueses e brasileiros em todo o mundo, Lyris Wiedemann, professora da Universidade de Stanford e tradutora independente afirmou:

«...it is virtually impossible for a native speaker of one variety of Portuguese (European or Brazilian) to do a good translation into the other. Although there are unfortunately people who may feel, and announce themselves, as capable of translating or editing for both varieties, their work usually does not pass the simplest scrutiny of a native speaker».

O que terá levado uma tradutora com um mestrado em Didáctica da Linguística e um doutoramento em Linguística Aplicada a fazer tal afirmação? Muito simplesmente, o conhecimento prático do modo como se processa a comunicação pela via escrita – necessariamente através da utilização da ortografia. Ora, na língua portuguesa – em que existem duas normas ortográficas bem definidas e estabilizadas, quase centenárias (2), a norma euro-afro-asiático-oceânica e a norma brasileira – a tradução para qualquer uma destas normas utiliza necessariamente a língua e a linguagem próprias dos respectivos falantes (e, evidentemente, escreventes), através do léxico, da gramática, da morfologia, da sintaxe, da prosódia e de todos os restantes componentes da língua. Sonhar sequer que, com a implementação do acordo ortográfico (com minúsculas, devido ao número e calibre dos erros e disparates nele contidos), as duas normas linguísticas passariam a ter como que um salvo-conduto para circularem livremente em ambos os espaços linguísticos, constitui uma cegueira indesculpável.

As duas normas estabilizadas da língua portuguesa não chegaram até 1990 por nenhum passe de mágica ou milagre. Como não podia deixar de ser, aí chegaram por obra dos seus falantes e pelas influências recebidas de outras línguas e culturas. No caso do Brasil, por exemplo, ao contrário do português europeu, a influência do francês é insignificante e a marca do inglês americano na língua aí falada e escrita é omnipresente, sobretudo, e como não podia deixar de ser, na norma “culta” da língua.

Entre o português utilizado (pela fala e pela escrita) em Portugal e o português utilizado (pela fala e pela escrita) no Brasil, as diferenças mais insignificantes são as ortográficas: nunca as consoantes mudas – é bom não esquecer que o acordo foi fabricado para acabar com esta diferença ortográfica entre Portugal e o Brasil – impossibilitaram a compreensão de qualquer texto. As maiores diferenças – as que impedem frequentemente uma compreensão natural e escorreita da língua escrita pelos falantes da outra norma – residem no modo como são utilizados o léxico e a gramática. São estas diferenças que inviabilizam em termos práticos a utilização em Portugal das traduções feitas por brasileiros ou a utilização no Brasil das traduções feitas por portugueses. Refiro-me aqui, exclusivamente, às traduções de textos especializados (os linguistas chamam-lhes textos pragmáticos) necessários à vida dos cidadãos, das empresas e das organizações públicas, como a tradução de literatura técnica diversa ou de outras áreas, como o direito, a economia, a medicina, etc. Esta inviabilidade é pacificamente aceite, há já muitos anos, pela indústria das línguas: tradução para Portugal e os países africanos-asiáticos-oceânicos de língua portuguesa é para ser feita por tradutores portugueses ou dos respectivos países e tradução para o Brasil é necessariamente para ser feita por tradutores brasileiros. Subverter este princípio básico é abrir a porta ao disparate grosso e abundam os exemplos quando tal aconteceu. Por uma estranha extensão deste conceito, já cristalizado em todo o mundo, os clientes de tradução pedem-nos também traduções em português cabo-verdiano, angolano, moçambicano, timorense, etc. Os mais espertos (bem...é só fazer as contas...) pedem-nos até traduções redigidas num português “universal” ou “internacional”, para permitir a sua utilização directa, i.e., sem qualquer adaptação, do Minho a Timor com passagem pelo Brasil! Os acordistas, defensores do “português universal e expandido”, que o escrevam! Não irão faltar trapaceiros que lhes comprem o serviço, desde que seja a pataco! Faltarão, isso sim, é pessoas que o consigam ler com proveito!

Referindo-me apenas à área da minha especialização em tradução, a engenharia mecânica, não me passa sequer pela cabeça traduzir textos desta área para o Brasil: as máquinas que eu conheço não têm arruelas, munhões ou caçambas, nem são lubrificadas com graxa, os meus automóveis não têm caixas de câmbio, cilindros-mestre ou chapéus chineses, nas minhas estradas não existem greides, acostamentos ou canteiros centrais e o meu trabalho é feito em computadores que não têm mouses. Quanto à gramática do português europeu, os meus colegas brasileiros não a conhecem e eu também não conheço a deles. Conclusão nua e crua: o nosso trabalho (o meu ou o deles) «usually does not pass the simplest scrutiny of a native speaker». E para textos cuja compreensão imediata e natural pelos leitores a que se destinam é uma absoluta necessidade, não é a ortografia (unificada ou não) que assegura tal compreensão: alguém quer ler o manual da geladeira (frigorífico) comprado (assumo o erro na concordância) em Portugal numa língua que lhe é estranha, ou ter que folhear um dicionário contrastivo (existe algum verdadeiramente sério?) a cada 3 ou 4 palavras, para poder pôr o coiso (ou será a coisa?) a funcionar? O acordo e os seus defensores querem e acham até que é possível. Cegueira completa!

Tudo isto ultrapassa, e muito, as estafadas anedotas sobre o nosso desacordo linguístico com o Brasil, como a péssima reputação das nossas raparigas em terras brasileiras, só por o serem, a recusa, estranha para nós, das mulheres brasileiras usarem cuecas, o seu extraordinário hábito de dormirem de camisola vestida (no Brasil, estranho é o Cristiano Ronaldo jogar com camisola, mesmo que seja das Quinas), a lavagem da louça ser feita na pia ou os plugues ligados às tomadas eléctricas! O inglês tem também problemas lexicais e ortográficos semelhantes (apesar de muito menos frequentes e da abundância de excelentes dicionários contrastivos), mas aposto que ninguém viu o manual de um automóvel britânico com o vocabulário e a ortografia do inglês americano, ou o manual de uma máquina fabricada em Espanha com vocabulário argentino ou venezuelano. Defender uma língua, qualquer língua, é também dar o seu a seu dono! E se posso aceitar que não somos os donos exclusivos da língua portuguesa, exijo também que a língua do meu país não seja a versão do português utilizada pelos outros povos, fruto das suas deambulações históricas e linguísticas, tão respeitáveis, evidentemente, como as nossas. Na mesma linha de raciocínio, também não deve ser o Brasil o dono exclusivo da língua (escrita agora, mas falada depois) em Portugal.

Se, por via do sinal errado dado pelo acordo ortográfico que nos querem fazer engolir, as empresas internacionais começarem a comprar no Brasil (...bem...é só fazer as contas...) as traduções para português-língua maravilhosa com 98% da grafia unificada e tudo, alguém duvida que iremos passar a comprar os nossos computadores com telas e mouses, os nossos carros com chapéus chineses ou as nossa torradeiras com plugues? E que, por força da repetição (uma forma bem conhecida para transformar uma língua, inicialmente franca, em língua corrente e oficial), a ‘caixa de velocidades’, a ‘ficha’ ou o ‘rato’ deixarão de existir no léxico português? Espanta-me a displicência com que é tida a tradução como um dos mais poderosos instrumentos de modificação de uma língua, tanto no sentido da sua desgraça (quando mal utilizada por tradutores de pacotilha), como no sentido do seu enriquecimento (quando utilizada pelos verdadeiros profissionais). Um exemplo: no português brasileiro corrente, mesmo em traduções publicadas de reputados documentos jurídicos, escreve-se frequentemente ‘corte’ e ‘corte suprema’, para designar as formas portuguesas-brasileiras ‘tribunal’ e ‘supremo/superior tribunal’, apesar de a única corte que o Brasil conheceu ter sido a de D. João VI!

E, sabendo tudo isto, por que iriam as tais empresas internacionais comprar as traduções no Brasil? Muito simplesmente, porque as podem comprar por lá a preços muitos mais baixos do que em Portugal (3). Há muito tempo – e com uma frequência que poderia deixar estarrecidos os mais distraídos – que é pedido aos tradutores portugueses que intervenham apenas como “revisores” de traduções feitas no Brasil, para as tornar utilizáveis em Portugal ou nos outros países com a norma linguística europeia. Com traduções lá compradas a feijões, em comparação com os preços correntes em Portugal, e com preços de revisão a cerca de 1/4 do preço da tradução...bem...é só fazer as contas! O acordo ortográfico dá uma ajuda...

E, nos concursos públicos portugueses em que é exigida a tradução portuguesa dos documentos das propostas apresentadas (que prevalece, nos termos legais, sobre a versão estrangeira dos mesmos...), irão ser aceites as traduções brasileiras, sem os Cs, os Ps e demais disparates do acordo, mas também, e fundamentalmente, com um léxico e gramática que nos são estranhos? Nos concursos de grande envergadura, em que o volume de tradução atinge facilmente os muitos milhares de páginas, a compra da sua tradução no Brasil traduzir-se-á na poupança de...bem...é só fazer as contas! Será esta a internacionalização da língua que nos prometem os defensores do acordo? Esperem os acordistas pelo resultado: à força de gritarem alegremente aos quatro ventos que “não somos os donos exclusivos da língua”, abrem-se as portas para que ela seja apenas o que outros muito bem quiserem que seja. Os ingleses também não são os donos exclusivos do inglês, mas também não pensam, porque não são cegos, em escrever como os americanos!

O acordo ortográfico irá funcionar como o mais fantástico instrumento para mandar para o desemprego muitos tradutores portugueses, ou para os transformar em peças secundárias no ciclo de tradução/produção de documentos. E, se muitos tradutores portugueses devem actualmente os seus rendimentos à legislação portuguesa e comunitária que obriga a fornecer aos consumidores documentação nas suas línguas nacionais, irão ser os tradutores brasileiros os verdadeiros beneficiários de tal legislação, para a qual o Brasil não foi, evidentemente, tido nem achado. Um verdadeiro subsídio português e comunitário concedido ao Brasil a fundo perdido e acompanhado de patéticas palavras de ordem de “a língua não é só nossa” e “viva o acordo e a internacionalização do português”. Afinal, o Ensaio sobre a Cegueira não é apenas um romance...

João Roque Dias | Tradutor (CT)
www.jrdias.com

____________________

(1) Disponível em: http://www.jrdias.com/jrd-portugal-brasil.htm
(2) 1 de Setembro de 1911, data da entrada em vigor em Portugal da Reforma Ortográfica, sem acordo com o Brasil.
(3) Por exemplo, no estado do Rio de Janeiro, em 2008, o salário mínimo (piso salarial) para advogados e contadores (i.e., contabilistas) empregados – o escalão mais elevado definido pela Lei Ordinária Estadual n.º 5.168, de 20-12-2007 – é de R$ 1200,00 (mil e duzentos reais), ou seja, cerca de € 449,00. Como comparação, em Portugal, o Contrato Colectivo de Trabalho para o sector da restauração estipula uma remuneração mínima pecuniária de base de EUR 495,40 (o escalão mais baixo da tabela) para, por exemplo, ajudantes de despenseiro, contínuos e empregados de limpeza...

terça-feira, 17 de junho de 2008

Fatos ortográficos - Crónica de Desidério Murcho

Eis a minha crónica de hoje do Público:

O acordo ortográfico que alguns linguistas nos querem impor à força começa com esta contradição delirante: 1) vamos reformar a ortografia para dar um passo na direcção da unificação ortográfica e 2) vamos seguir o princípio fonético nessa reforma. 1 é incompatível com 2 pela simples razão que as maiores diferenças entre o português de Portugal e o dos outros países é precisamente a fonética. Daí que o acordo tenha o resultado de desunificar quando pretendia o oposto: hoje escrevemos todos, no Brasil, Portugal e nos outros países, “aspecto”. Mas com o acordo os brasileiros continuam a escrever do mesmo modo, porque ao falar pronunciam o “c”; mas nós deixaremos de escrever o “c” porque não o pronunciamos.

Uma pessoa ingénua poderá pensar que um acordo ortográfico que parte destes dois princípios contraditórios só pode ter sido arquitectado por palermas, e poderá ter razão. Mas não tem toda a razão. Outra explicação plausível é que os linguistas que fizeram este acordo o fizeram por razões diferentes das que usam para o vender aos políticos. Aos políticos, falam da unificação da língua e acenam com a maravilha do Quinto Império Linguístico. Como os políticos não resistem a uma saudade salazarista de conquistas futuras e grandiosidades sonhadas, ficam logo emocionados. Mas a razão mais forte que move os linguistas é a pura vontade teórica de mudar a maneira como as pessoas escrevem, para aplicar teorias linguísticas supostamente de esquerda, simplificadoras da ortografia, que encara coisas como as consoantes mudas uma relíquia conservadora do tempo em que só 1 % da população sabia escrever. (...)”

Desidéro Murcho | Filósofo. | texto completo em De rerum natura | 17/06/2008

domingo, 15 de junho de 2008

Sr. Ministro da Cultura, por favor explique.


«O entendimento entre todos os falantes da língua portuguesa e a sua divulgação constituem o instrumento indispensável na resolução de problemas de coesão social, desenvolvimento, democracia e segurança. Só assim poderemos participar, e a nossa participação é essencial na criação de um estado mundial de ordem baseada no direito e de progresso. (...) Por isso Portugal ratificou o acordo ortográfico da língua portuguesa e criou um fundo para o aprofundamento da língua nas regiões do mundo que contam com comunidades de portugueses e nos países da CPLP.»

J. A. Pinto Ribeiro | Ministro da Cultura
[ citado por Marco Antinossi | Agência Lusa | S. Paulo | 10-06-2008 | 16:01:33 ]

Preocupam-me, enquanto professor, investigador e cidadão, a generalidade das declarações estranhas que o Ministro da Cultura proferiu no Dia de Portugal no Consulado Geral de Portugal em S. Paulo. São declarações vagas e confusas que tocam matérias de extrema importância linguística, política, científica e cultural, as quais não podem, entendo, ser abordadas com tal “vaguidez” e confusão por um alto responsável da governação, ainda para mais em dia e em contexto tão simbólicos.

O parágrafo em epígrafe preocupa-me particularmente, pelo que me aterei a ele exclusivamente. Do ponto de vista formal, está muito mal construído (aliás o conjunto das declarações apresenta deficiências inaceitáveis de redacção). Será problema do texto original do Ministro ou da transcrição do repórter? Na ausência de uma versão autorizada ou corrigida só posso especular.

Vejamos, na sequência “O entendimento entre todos os falantes da língua portuguesa e a sua divulgação” não se percebe qual é o antecedente da expressão anafórica “sua divulgação”. Explico-me: uma anáfora em Linguística é uma forma ou sequência de formas que remete para outra(s) anteriormente presente(s) no mesmo enunciado; assim, “sua divulgação” recebe significado pleno pela sua relação com uma expressão antecedente, a qual destaca ou especifica. Admitindo que “língua portuguesa” é o antecedente (e estou a conjecturar), o enunciado não deixa de ser bizarro. Aceitando, no entanto, esta conjectura como boa, pode-se tentar reformular a declaração do Ministro, no sentido de a clarificar, assim:

«A reforma ortográfica que Portugal aprovou é consequência da vontade de Portugal participar na criação de “um estado mundial de ordem baseada no direito e de progresso”, e a participação nessa criação decorre da “resolução de problemas como coesão social, desenvolvimento, democracia e segurança”, os quais serão resolvidos pelo “entendimento entre todos os falantes da língua portuguesa” e pela divulgação da mesma (?).»

Qualquer que tenha sido a intenção discursiva do Ministro da Cultura, ou qualquer que seja a interpretação do enunciado, estamos perante uma declaração inquietante — mesmo dando de barato que “coesão social, desenvolvimento, democracia e segurança” não são problemas e que o enunciado peca, como se vê, por problemas graves de formulação.

O Acordo Ortográfico de 1990 (AO) parece ser uma simples peça de um jogo de xadrez geo-político que nos escapa e que nunca tinha sido antes abertamente referido pelos nossos governantes. Teremos porventura de aguardar as “medidas importantes para a expansão do português no mundo” que, neste 10 de Junho cheio de novidades, o Ministro dos Negócios Estrangeiros anunciou que o Primeiro-Ministro iria anunciar. Talvez este puzzle “globo-estratégico” se torne mais claro por ocasião da cimeira da CPLP. Ou não.

Voltando ao AO. Sejam quais forem as medidas ou posições do governo português em matéria de política internacional, seja qual for a importância do relacionamento institucional e cultural estreito de Portugal com as nações de matriz linguística portuguesa, o interesse nacional sobreleva, em todos os planos e dimensões jurídicas e diplomáticas, de quaisquer compromissos ou agendas internacionais. Não pode deixar de assim ser, no quadro jurídico-constitucional que nos rege. Esse quadro jurídico-constitucional consagra (1) a qualidade do ensino e a integridade do uso da língua portuguesa como valores constitucionalmente garantidos, (2) a obrigação do Estado de prestar contas sobre a gestão dos assuntos públicos, e (3) os direitos dos cidadãos de serem informados sobre actos do Estado e de exigirem a cessação de actos ou situações lesivos do património da Nação, o qual património inclui necessariamente a língua, o seu uso e a sua ortografia.

Ora, o AO põe em causa valores como estabilidade cultural, ortográfica e pedagógica, e é elemento perturbador e disruptor da qualidade do ensino. O domínio escrito da língua portuguesa é a chave que abre a porta de todas as outras áreas do conhecimento, logo, o comprometimento da estabilidade do ensino do português porá em causa a qualidade do ensino de todas as outras matérias e disciplinas. Do ponto de vista da coesão social e da qualificação profissional e cultural dos cidadãos portugueses, o AO é objectivamente um atentado contra a educação, a cultura, a língua e ... a Pátria.

Do ponto de vista da qualidade da nossa democracia e da nossa cidadania, o processo através do qual esta reforma foi elaborada e está a ser imposta viola todos os preceitos morais e jurídicos que devem reger uma sociedade aberta moderna: não só NÃO HOUVE QUALQUER DISCUSSÃO PÚBLICA em fóruns idóneos, como FORAM IGNORADOS PARECERES IDÓNEOS MUITO CRÍTICOS que aconselhavam inequivocamente os decisores políticos a não aprovarem o AO, pela natureza das suas múltiplas e profundas deficiências.

O caso do parecer perdido ou ignorado da Associação Portuguesa de Linguística de 2005 é exemplar: pedido pelo Instituto Camões, na sequência da assinatura do 2.º Protocolo Modificativo do AO, só recentemente, em Abril de 2008, foi tornado público (por ocasião da audição parlamentar sobre o AO). E foi tornado público pelo emitente (a APL, cujo sentido cívico deve ser aplaudido) e não pelo requerente. Como foi isto possível?

(abordarei o teor deste parecer fundamental em ocasião mais oportuna)

Assim sendo, e posto isto, não consigo descortinar de que forma o monumento de inépcia e insensatez que é o AO poderá contribuir para a criação de um “estado mundial de ordem e de progresso”, ou para erradicar problemas relativos à “coesão social, desenvolvimento, democracia e segurança” nas diversas lusofonias afectadas pelo monstro acordortográfico, dado que o teor do mesmo compromete a coesão social e o desenvolvimento dos povos afectados, e a sua imposição compromete a plenitude da democracia nas comunidades mais afectadas. Isto para não referir o fosso ortográfico que se cavará entre as várias lusofonias pela ratificação e eventual aplicação do AO em apenas três países (nos termos do 2.º protocolo modificativo de 2004).

Por tudo isto, Sr. Ministro da Cultura — e partindo do princípio de que V. Ex.ª leu, ponderou e conhece bem o conteúdo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 — peço-lhe, respeitosa e encarecidamente, que explique.

Explique, por favor, o sentido profundo das suas declarações e explique o seu entendimento das consequências da aplicação da reforma ortográfica do Acordo de 1990, entendimento naturalmente baseado no conhecimento privilegiado que V. Ex.ª e o seu Ministério têm do assunto.

António Emiliano | Linguista e filólogo | Universidade Nova de Lisboa

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Fixar o Caos Ortográfico (2): Electrotecnia e Electrónica

Numa postagem de 9 de Junho intitulada ‘Fixar o Caos Ortográfico’ escrevi:

«Mas como os nomes que designam domínios do saber, cursos e disciplinas podem ser opcionalmente maiusculizados (AO, Base XIX, 1.º, g), todas as designações que contenham a palavra ‘Electrónica’, como ‘Engenharia Electrónica’, ‘Electrónica Industrial’, ‘Electrotecnia e Electrónica’, etc. terão multigrafias correctas (deixo ao leitor o trabalho de calcular quantas grafias correctas o último destes termos pode ter).
Ou seja, a multiplicidade gráfica associada a uma única palavra será multiplicada por todos os termos, locuções, fraseologias e colocações que a contenham.»

Um leitor habituado a problemas de cálculo combinatório, o Sr.º Eng.º Américo Tavares, autor do blog Problemas-e-Teoremas, teve a bondade de enviar um comentário para o blog da DEFESA DA LÍNGUA com a lista completa das 32 formas unificadas correctas para a designação de um hipotético curso ou disciplina de ‘Electrotecnia e Electrónica’. Note-se que, se o segundo C de ‘Electrotecnia’ fosse mudo algures (e não estamos livres de que o seja nalgum recanto recôndito das lusofonias), estaríamos a braços com 64 formas correctas unificadas. Transcrevo a lista na íntegra, para edificação acordortográfica de quem se interessa por estas coisas.

ELECTROTECNIA E ELECTRÓNICA
(designação de curso, disciplina ou área científica)
Lista de formas ortográficas unificadas correctas conforme as Bases IV e XIX do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990):

1. Electrotecnia e Electrónica
2. electrotecnia e electrónica
3. Electrotecnia e Electrônica
4. electrotecnia e electrônica
5. Eletrotecnia e Eletrónica
6. eletrotecnia e eletrónica
7. Eletrotecnia e Eletrônica
8. eletrotecnia e eletrônica
9. Electrotecnia e Eletrónica
10. electrotecnia e eletrónica
11. Electrotecnia e Eletrônica
12. electrotecnia e eletrônica
13. Eletrotecnia e Electrónica
14. eletrotecnia e electrónica
15. Eletrotecnia e Electrônica
16. electrotecnia e electrônica
17. Electrotecnia e electrónica
18. electrotecnia e electrónica
19. electrotecnia e Electrônica
20. electrotecnia e electrônica
21. Eletrotecnia e eletrónica
22. eletrotecnia e eletrónica
23. eletrotecnia e Eletrônica
24. eletrotecnia e eletrônica
25. Electrotecnia e eletrónica
26. electrotecnia e eletrónica
27. electrotecnia e Eletrônica
28. electrotecnia e eletrônica
29. Eletrotecnia e Electrónica
30. eletrotecnia e electrónica
31. eletrotecnia e Electrônica
32. electrotecnia e electrônica

[Publicada por Américo Tavares | Em Defesa da Língua Portuguesa Contra o Acordo Ortográfico | 10 de Junho de 2008 | 12:31]

Limito-me a acrescentar que — para lá da constatação do absurdo evidente (e do crime de lesa cultura e de lesa língua) que é instituir uma “acordortografia unificada” que permite coisas destas — importa ressalvar com a devida ênfase a quantidade de problemas não acautelados que factos como estes levantarão à normalização terminológica e ao processamento informático de textos, seja esse processamento realizado para efeitos de investigação linguística, criação de aplicações, disponibilização de dados em ambiente web ou em bases de dados de acesso privado, ou simples processamento de texto.

Enquanto há língua, há esperança.

António Emiliano

PS. hoje é feriado municipal em Lisboa; a designação do feriado na nova ortografia é ‘Dia/dia de Santo/santo António/Antônio’ (com 8 possibilidades acordortográficas unificadas).

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Vasco Graça Moura: Uma recapitulação útil

Sendo a língua portuguesa um bem constitucionalmente protegido, quer no seu papel identitário, quer no que toca ao património cultural do nosso país (artºs 9º, e) e f) e 78º, c) e d) da Constituição), o Acordo Ortográfico [AO] virá a causar-lhe lesões profundas, afectando-a de maneira decisiva, irreversível e inaceitável em Portugal, com a consequente violação da lei fundamental, do interesse geral e dos direitos dos cidadãos.
É chocante o desfasamento entre o plano científico, cujas críticas e objecções não foram atendidas com posições devidamente fundamentadas por parte das autoridades competentes, e o plano político em que foram feitas, tanto a aprovação do Protocolo Modificativo de 2004, como a aprovação e ratificação em 1991 do próprio AO. Este, aliás, decorridos 18 anos, nunca entrou em vigor por razões de inadequação, desinteresse manifesto de vários dos Estados subscritores e, entretanto, de obsolescência.
Até o ilustre linguista brasileiro Evanildo Bechara, que tem tomado posição (confessadamente política) em favor do AO, acaba de afirmar, em sessão que teve lugar nos Açores em Maio do ano corrente: “Só num ponto concordamos, em parte, com os termos do Manifesto-Petição quando declara que o Acordo não tem condições para servir de base a uma proposta normativa, contendo imprecisões, erros e ambigüidades”.
(...)

Vasco Graça Moura | Escritor | texto completo em Diário de Notícias | 11/06/2008

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Afinal, ghoti é ou não peixe? O Desacordo Ortográfico

Entre os argumentos ditos objectivos esgrimidos pelos que subscrevem o Acordo Ortográfico, apesar dos inúmeros pareceres científicos oficiais que, quase sem excepção, sublinham as suas incongruências técnicas (que o poder político não deveria poder ignorar), surge inevitavelmente o nosso já tão conhecido argumento da facilidade (que é na realidade o argumento do facilitismo). Reza assim: a (pretensa) unificação ortográfica, com as alterações e simplificações que sanciona, permite que a aprendizagem do português se torne muito mais fácil, evita que as crianças, adolescentes e depois adultos tenham dificuldades na aprendizagem da nossa língua, e por isso contribuirá para as famosas estatísticas que farão de Portugal um país enfim alfabetizado. Os equívocos (e alguma má-fé) são vários. Listarei apenas alguns:

1. O primeiro diz naturalmente respeito à falácia da facilidade como estratégia de ensino. Sou professora do Ensino Superior, e fui professora do Ensino Básico e Secundário, há 33 anos. Em todos os níveis de ensino, os alunos que tive e que vi crescer, singrar e em vários casos ocupar lugares decisivos nas estruturas culturais em Portugal e no estrangeiro nunca foram os alunos que ficavam contentes com a facilidade do que lhes era ensinado. Pelo contrário. Foram os alunos para quem as dificuldades surgiam como desafio ao pensamento, à reflexão e à análise crítica. Um ensino que parte do princípio de que tudo deve ser facilitado é um ensino que promove a mediocridade. Um ensino de português que esgrime a falácia da facilidade é um ensino de português que promoverá falantes e cidadãos portugueses habituados à lei do menor esforço e ao império da mediocridade.

2. Assistimos a muitas comparações deste caso com o que se passa com outras línguas. Não resisto à comparação com o inglês, que não só não tem uma norma ortográfica única como tem várias (basta consultar os correctores ortográficos). Nem ao império dos EUA ocorreu fazer um acordo ortográfico que levasse os ingleses a alterar a sua ortografia (aliás infinitamente mais complexa do que a portuguesa, por factores históricos que não só não são descartados como, pelo contrário, são assumidos como legítimos). Nem os ingleses quereriam. Como também não passou pela cabeça aos ingleses (e também não passa pela nossa…) impor a sua ortografia aos outros países de língua oficial inglesa.

3. Tiremos algumas conclusões: foi isto que impediu que o inglês se tornasse naquilo que é, a língua franca de todo o mundo? Não. Foi isto que levou as crianças inglesas e americanas e neo-zelandesas e australianas e… a figurarem na cauda da alfabetização, por terem de aprender uma língua tão difícil? Também não. George Bernard Shaw lembrava que o inglês é a única língua em que uma palavra escrita como “ghoti” se poderia ler “fish” (“gh” como em “laugh”, “o” como em “women”, “ti” como em “nation”). Porque é que o governo português promove então, a partir do 2º ano do Ensino Básico, o ensino de uma língua tão difícil? Não seria mais fácil nenhum português a aprender? Ficava assim resolvido o problema, não? Outra versão: gostamos muito do inglês difícil porque é dos outros, e achamos que o português só consegue ser aprendido pelos falantes de português (e pelos que trabalham em organismos internacionais) se for fácil? Visão pequenina, esta. Respondo com Garrett, no Arco de Sant’Ana: “Portugal é um país pequeno. E a sua gente não é muito grande”. É isto que queremos ser? Uma gente que se contenta em não ser muito grande?

4. Algumas consequências práticas que o Governo de Portugal e o Parlamento português, em princípio responsabilizáveis pela defesa dos interesses do país que os elegeu, deveriam ter em conta: os efeitos que o acordo ortográfico (que não corresponde, ao contrário do que se diz, a uma unificação ortográfica, visto que as duplas grafias se mantêm) terá a) sobre o mercado editorial em Portugal e nas relações entre o mercado editorial português e os países africanos de língua oficial portuguesa, que utilizaram até agora a norma ortográfica portuguesa; b) sobre a produção de materiais electrónicos e todo o software em português de Portugal, que deixa ainda mais de ser rentável, produzindo-se uma necessária homogeneização em função do grupo de falantes mais numeroso (o Brasil). Estes dois pontos não são apenas económicos (embora também o sejam, e o Governo devia estar atento a isso, porque é da sua competência). Reflectem uma política de afirmação da presença de Portugal como parceiro de direito na cena internacional, com direito a escolhas ortográficas legítimas e não necessariamente subordinadas à lei do maior número (que, como expliquei atrás, é também aqui a lei do menor esforço).

5. Alguns dos ataques legíveis, aqui e ali, em alguma imprensa, muitas vezes feitos em tom diletante, menosprezam os efeitos reais do acordo e exprimem posições contraditórias. Ou o acordo implica alterações de somenos importância (como alguns dizem), e nessa altura não se justificam os elevadíssimos custos que, a todos os níveis, vai implicar, a nível editorial mas também directamente nos bolsos dos portugueses (nomeadamente dos que têm filhos a estudar); ou o acordo implica alterações de fundo, e nessa altura não podem ser descartados, de forma displicente, todos os pareceres científicos que desde 1990 demonstram à saciedade o seu descrédito. Rui Tavares, como historiador que já se referiu à questão do Acordo pelo menos por duas vezes, talvez devesse reflectir um pouco mais demoradamente sobre esta questão. Concordo que a pressão das crónicas regulares pode às vezes não ajudar. Mas este é um assunto sério, que merece ser tratado como tal, e não com a displicência de quem pelos vistos acha que o assunto se arruma com umas letras que entram e outras que saem. Leia por favor os pareceres todos. O da Comissão Nacional da Língua Portuguesa; os dos linguistas; o da Direcção-Geral do Ensino Básico e Secundário; o da Associação Portuguesa de Linguística, o da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros. Leia também os outros (e todos foram entregues num dossier na Assembleia da República, como todos estão disponíveis neste blogue). Só depois de ler tudo isto deveria pronunciar-se. Duvido que, depois de ler tudo isto, consiga, com seriedade científica, manter a mesma posição.

6. Não se pense que se trata de um movimento passadista, contra qualquer “ousadia” de repensar a língua, a educação e a cultura por ela veiculadas e com ela feitas. De modo nenhum – eu diria mesmo bem pelo contrário. A questão é que há reformas que foram feitas com seriedade, e não dando de barato uma ideia científica. E há outras, como a presente, que foram feitas sem nunca terem sido tidos em conta os pareceres daqueles que, sabendo, se pronunciaram. A Drª Edite Estrela talvez não tenha ainda percebido que ninguém quer propor que se escreva “orthographia”, ou “pharmacia”. Mas talvez a Drª Edite Estrela não tenha lido bem os pareceres referidos no número anterior. Está sempre a tempo de o fazer, contudo.

7. Não se pense ainda que se trata de um movimento nacionalista, o protagonizado pelos que estão contra este acordo. Falarei por mim: quem me conhece e conhece o meu trabalho só pode saber, justamente, que sempre lutei contra apegos nacionalistas bacocos. A questão é outra, e mais séria, para quem a quiser entender.


Helena Carvalhão Buescu | Professora Universitária | Faculdade de Letras de Lisboa

Petição contra o Acordo Ortográfico ultrapassa 50 000 subscritores

A petição MANIFESTO EM DEFESA DA LÍNGUA PORTUGUESA CONTRA O ACORDO ORTOGRÁFICO atingiu e ultrapassou ontem, dia 8 de Junho, o número de 50 000 assinaturas válidas. Os signatários requereram hoje dia 9 ao Presidente da Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura da Assembleia da República, Deputado Luís Marques Guedes, a publicação da petição em Diário da República e o agendamento da sua apreciação no Parlamento, e fizeram entrega ao mesmo de três pareceres inéditos sobre o Acordo Ortográfico de 1990.

domingo, 8 de junho de 2008

Fixar o Caos Ortográfico

A grande novidade do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) [AO] em relação aos que o precederam é a generalização de facultatividades gráficas.

O peregrino “critério da grafia dupla” é justificado na Nota Explicativa [NE] do AO, a propósito da acentuação gráfica, assim: «optou-se por fixar a dupla acentuação gráfica como a solução menos onerosa para a unificação ortográfica da língua portuguesa.» (NE, 5.2.4)

Se onde se lê ‘dupla acentuação gráfica’ se ler ‘desunificação ortográfica’ — o que é legítimo, dado que a consagração da grafia dupla reflecte a impossibilidade da unificação luso-brasileira — obtém-se o seguinte enunciado:

«optou-se por fixar a desunificação ortográfica
como a solução menos onerosa para a
unificação ortográfica da língua portuguesa

Mas se se ler antes ‘caos ortográfico’, expressão que considero adequada em face das consequências do AO, então o texto da NE revela um sentido escondido ainda mais expressivo:

«optou-se por fixar o caos ortográfico
como a solução menos onerosa para a
unificação ortográfica da língua portuguesa

Escreveu a Sr.ª Professora Isabel Pires de Lima, deputada do PS e ex-Ministra da Cultura, que «o princípio da facultatividade excessiva (...) vai contra o próprio conceito normativo da ortografia» (Diário de Notícias, 2/6/08): quem leu o AO — e seria importante saber quantos decisores políticos leram — não pode deixar de ficar com impressão semelhante.

Mais, o estabelecimento generalizado da grafia dupla nos domínios da acentuação, das consoantes mudas e da maiusculização, minará a estabilidade do ensino da Língua Portuguesa (ferramenta que abre a porta a todas as outras disciplinas) e porá em causa a integridade do uso e da difusão internacional da língua portuguesa, valores que a Constituição consagra (Art.º 9.º. al. f)

A possibilidade de se escrever de forma alternativa uma quantidade enorme de palavras e de expressões complexas deixa ao arbítrio de cada utilizador individual a estrutura da ‘sua’ ortografia pessoal — imagine-se o que seria cada um de nós poder pôr em vigor a sua versão personalizada do Código de Processo Penal ou do Código da Estrada!

Imagine-se então a tarefa titânica que será, num futuro talvez não muito distante de nós, a correcção de uma prova de Língua Portuguesa, quando cada professor tiver de conhecer todas as grafias possíveis da “ortografia unificada” da lusofonia para determinar o que está certo e errado.

A aplicação da facultatividade na acentuação e nas consoantes ditas mudas resultará em grafias múltiplas, não apenas duplas, ou seja, em heterografia generalizada.

Por exemplo, formas verbais como ‘fraccionámos’ e ‘decepcionámos’ passarão a ter, não duas, mas quatro grafias correctas na “ortografia unificada” do português, assim:

fraccionámos, fraccionamos, fracionámos, fracionámos;

decepcionámos, decepcionamos, dececionámos, dececionamos.

O adjectivo ‘electrónico’ passa a ter quatro:

electrónico, eletrónico, electrônico, eletrônico.

Mas como os nomes que designam domínios do saber, cursos e disciplinas podem ser opcionalmente maiusculizados (AO, Base XIX, 1.º, g), todas as designações que contenham a palavra ‘Electrónica', como ‘Engenharia Electrónica’, ‘Electrónica Industrial’, ‘Electrotecnia e Electrónica’, etc. terão multigrafias correctas (deixo ao leitor o trabalho de calcular quantas grafias correctas o último destes termos pode ter).

Ou seja, a multiplicidade gráfica associada a uma única palavra será multiplicada por todos os termos, locuções, fraseologias e colocações que a contenham.

Por exemplo, se uma universidade portuguesa oferecer o curso de ‘Electrotecnia e Electrónica’, e outra oferecer o mesmo curso com a designação de ‘eletrotecnia eletrónica’, uma base de dados nacional dos cursos oferecidos em Portugal registará dois cursos com nomes semelhantes. O mesmo sucederá num motor de busca da internet.

As designações de arruamentos, logradouros públicos e edifícios também podem ser opcionalmente maiusculizadas (AO, Base XIX, 2.º, i) .

Assim, ‘Rua de Santo António’ terá oito formas correctas na “ortografia unificada”:

Rua de Santo António, Rua de Santo Antônio,
Rua de santo António, Rua de santo Antônio,
rua de Santo António, rua de Santo António,
rua de santo António, rua de santo Antônio.

Se se considerar termos e expressões complexas encontramos também multigrafias correctas. Um termo como ‘perspectiva cónica’ passa a ter quatro formas correctas,

perspectiva cónica, perspectiva cônica,
perspetiva cónica, perspetiva cônica.

Mas um termo como ‘dactiloscopia electrónica’ terá oito:

dactiloscopia electrónica, dactiloscopia electrônica,
dactiloscopia eletrónica, dactiloscopia eletrônica,
datiloscopia electrónica, datiloscopia electrônica,
datiloscopia eletrónica, datiloscopia eletrônica.

O impacto da “multigrafia unificada do português na estabilidade e integridade dos vocabulários e terminologias de especialidade, nomeadamente, de áreas científicas e tecnológicas, é completamente desconhecido mas, previsivelmente, catastrófico.

Nos domínios fundamentais da normalização terminológica da língua portuguesa (domínio em que a unificação luso-brasileira é impossível), da indexação e catalogação documental e bibliográfica e do processamento informático da língua — domínios em que o País não pode deixar de estar na vanguarda do desenvolvimento científico, cultural e tecnológico — as consequências da aplicação do AO serão dramáticas e trarão custos financeiros e culturais incalculáveis (que ninguém acautelou).


António Emiliano | Linguista e filólogo | Universidade Nova de Lisboa

[ versão extensa de artigo de opinião | Jornal de Notícias | 15/6/2008 | p.14 ]


PS. como foi observado argutamente pelo comentador Américo Tavares em 10/6, a quem agradeço o trabalho de cálculo, a expressão 'Electrotecnia e Electrónica' passará a ter 32 (trinta e duas!) formas correctas na nova ortografia unificada. A lista completa, ou a "listagem", como agora sói dizer-se, encontra-se no texto do comentário.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Síntese de medidas rectificativas necessárias

Transcrição do documento entregue em mão a Sua Excelência o Presidente da República na audiência de 2 de Junho de 2008.


ACORDO ORTOGRÁFICO DE 1990:

SÍNTESE DE MEDIDAS RECTIFICATIVAS NECESSÁRIAS

Os signatários do MANIFESTO EM DEFESA DA LÍNGUA PORTUGUESA CONTRA O ACORDO ORTOGRÁFICO consideram que o dossier que têm a honra de entregar a Sua Excelência o Presidente da República demonstra a necessidade de:

1. no plano substantivo,

a) correcção das inúmeras imprecisões, erros e ambiguidades do texto actual;

b) eliminação das facultatividades nele previstas ou por ele tornadas possíveis, nos domínios do H inicial (Base II), das consoantes mudas (Base IV), da acentuação (Bases VIII-XI) e das maiúsculas e minúsculas (Base XIX);

c) reposição da questão das consoantes mudas (Base IV) nos precisos termos do Acordo de 1945;

d) explicitação de regras claras para a integração na ortografia portuguesa de palavras de outras línguas dos PALOP, de Timor e de outras zonas do mundo em que se fala português, dado que o texto do Acordo de 1990 é omisso nesta matéria;

e) elaboração dos vocabulários ortográficos a que se refere o Art.º 2.º do Acordo de 1990 (por instituições idóneas e com base em debate científico sustentado), e nos termos do mesmo, uma vez que são conditiones sine quibus non para a entrada em vigor de qualquer convenção desta natureza;

f) realização de estudos sobre o impacto real das vinte e uma bases do Acordo de 1990 no vocabulário do português europeu tendo em conta a frequência dos vocábulos, a existência de vocabulários de especialidade e acautelando a necessidade imperiosa da normalização terminológica;

g) elaboração de estudos e pareceres sérios sobre as consequências no médio e no longo prazo da entrada em vigor do Acordo Ortográfico nos vários sectores afectados nas sociedades que seguem a norma ortográfica euro-afro-asiático-oceânica;

h) posição clara do Ministério da Educação sobre esta matéria (baseada em pareceres técnicos de entidades idóneas), que afectará nas próximas décadas o ensino da língua portuguesa, e, por decorrência, de todas as outras disciplinas;

2. no plano formal,

necessidade de se atender a que o Acordo Ortográfico não pode entrar em vigor sem estar ratificado por todos os países que subscreveram o Protocolo Modificativo de 2004, sob pena de se cavar um fosso ortográfico em relação aos países que ainda não ratificaram nem o Acordo, nem esse Protocolo.

Lisboa, 2 de Junho de 2008

Pel' Os Signatários da petição

manifesto em defesa da língua portuguesa contra o acordo ortográfico

Vasco Graça Moura
Jorge Morais Barbosa
Maria Alzira Seixo
António Emiliano

Documentos entregues ao Presidente da República em 2/6/2008

Documentos entregues a Sua Excelência o Presidente da República sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990)

2/6/2008

  1. Ivo Castro & Inês Duarte, "Comentário do Acordo", in Castro, Duarte & Leiria, orgs., A Demanda da Ortografia Portuguesa: Comentário do Acordo Ortográfico de 1986 e subsídios para a compreensão da Questão que se lhe seguiu, Lisboa: Sá da Costa, 1987, 13 – 89 [comentário e parecer]
  2. Óscar Lopes, "O Acordo Ortográfico", in Castro, Duarte & Leiria, orgs., A Demanda da Ortografia Portuguesa: Comentário do Acordo Ortográfico de 1986 e subsídios para a compreensão da Questão que se lhe seguiu, Lisboa: Sá da Costa, 1987, 129 – 33 [parecer]
  3. Departamento de Linguística da Faculdade de Letras de Lisboa, "Posição sobre o Acordo Ortográfico", in Castro, Duarte & Leiria, orgs., A Demanda da Ortografia Portuguesa: Comentário do Acordo Ortográfico de 1986 e subsídios para a compreensão da Questão que se lhe seguiu, Lisboa: Sá da Costa, 1987, 134 – 8 [parecer]
  4. Comissão Nacional da Língua Portuguesa (CNALP), "Parecer sobre o Ante-projecto de Bases da Ortografia Unificada da Língua Portuguesa (1988) elaborado pela Academia das Ciências de Lisboa", 1989 [parecer]
  5. Direcção Geral do Ensino Básico e Secundário, "Apreciação do «Parecer sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa» (1990) elaborado pelo Coordenador da CNALP, Prof. Doutor Vítor Manuel Aguiar e Silva", 1991 [parecer]
  6. Associação Portuguesa de Linguística, "Parecer sobre as consequências da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990", 2005 [parecer – emitido a pedido do Instituto Camões, depois de assinado o Protocolo Modificativo de 2004]
  7. Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, "Parecer sobre o Acordo Ortográfico", 2008 [parecer]
  8. José de Almeida Moura (filólogo e gramático), "A Consolidação da Ortografia do Português", 2008 (no prelo in Boletim da Academia Internacional da Cultura Portuguesa) [parecer]
  9. João Andrade Peres (Prof. Catedrático de Linguística, da Fac. de Letras da Universidade de Lisboa), "Breve parecer sobre a entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990", 2008 [parecer]
  10. Vitorino Magalhães Godinho (Prof. Catedrático de História, da Fac. de Ciências Sociais e Humanas – Jubilado), "A Língua Portuguesa Ameaçada", 2008 [carta manifesto]
  11. Vasco Graça Moura, Acordo Ortográfico: A perspectiva do desastre, Lisboa: Alêtheia Editores, 2008 [livro]
  12. António Emiliano (Prof. Auxiliar Agregado de Linguística, Fac. de Ciências Sociais e Humanas da UNL), Foi você que pediu um acordo ortográfico?, Lisboa: Guimarães Editores, 2008 [opúsculo]
  13. António Emiliano (Prof. Auxiliar Agregado de Linguística, Fac. de Ciências Sociais e Humanas da UNL), Uma reforma ortográfica inexplicável: comentário razoado dos fundamentos técnicos do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), 2008 [parecer]

Pel’ Os Signatários da petição

manifesto em defesa da língua portuguesa contra o acordo ortográfico

Vasco Graça Moura
Jorge Morais Barbosa
Maria Alzira Seixo
António Emiliano