Factos relevantes — alguns dos quais estabelecidos nas últimas décadas pela investigação em linguística, neurolinguística, psicolinguística, grafemática e literacia — que os negociadores do Acordo Ortográfico ignoraram: factos inconvenientes para o acordismo de 1990-2008.
Facto: oralidade e escrituralidade são dois media autónomos de actualização e realização de um sistema linguístico.
Facto: a escrita alfabética assenta numa relação entre unidades de escrita (grafemas — que não é o mesmo que ‘letras’) e unidades fonológicas (fonemas — que não é o mesmo que ‘sons’). Nenhuma ortografia de base alfabética foi, é ou será um sistema de transcrição fonética, pelo que é um erro crasso invocar-se um “princípio fonético” ou “de pronúncia” como base para uma reforma ortográfica.
Facto: as crianças pré-alfabetizadas (e os analfabetos em geral) têm uma reduzida consciência fonológica, que não vai além da discriminação de sílabas, e não lhes permite discriminar explícita e activamente os sons da fala (segmentos fonéticos). Assim, as crianças pequenas que se iniciam na aprendizagem da escrita adquirem as formas gráficas — a imagem gráfica das palavras — de forma holística, i.e. global, pelo que o sentido de “equações grafémicas” do tipo ‘b+a=bá’ lhes é totalmente inacessível.
O papel real de estratégias grafo-fonémicas na aprendizagem da escrita e na leitura, e a existência de um interface grafo-fonémico como parte integrante (e necessária) do “mecanismo mental” de processamento da língua escrita que qualquer leitor adulto/fluente possui são assunto de discussão, debate e controvérsia na comunidade científica. Já o eram, aliás, em 1990, mas os arquitectos do Acordo Ortográfico, reputados homens de letras, não eram especialistas de grafemática nem consta que tivessem especial preparação nessa área. Note-se que um eminente cientista português (Alexandre Castro Caldas, neurologista) demonstrou experimentalmente que a actividade cerebral de um sujeito alfabetizado é distinta da de um sujeito não alfabetizado: o primeiro tem zonas do cérebro activadas que no segundo estão “adormecidas”. A aquisição da literacia e o processamento da língua escrita afectam a estrutura interna do cérebro de forma marcante e específica: logo, pensar numa reforma ortográfica como uma coisa de somenos importância que afecta de leve as pessoas, ou à qual as pessoas se adaptam facilmente, é simplesmente ignorar o estado actual da ciência.
Facto: ler não é ser capaz de juntar ou concatenar letras e extrair delas sequências de sons. Ler não é soletrar e soletrar não é ler (ainda que a soletração possa desempenhar um papel subsidiário em determinadas fases da aquisição da escrita por crianças ou adultos analfabetos). A insistência na soletração como base do ensino da escrita e da leitura é perniciosa, pois condiciona e limita o reconhecimento holístico dos itens lexicais; a soletração é hoje reconhecidamente uma estratégia errada de ensino da língua escrita, pois desvia o esforço do aprendente do reconhecimento e produção global das palavras escritas para a análise do valor individual dos grafemas (propiciando assim o surgimento de toda a sorte de erros e hesitações ortográficas).
Facto: as ortografias não são entidades naturais, e não mudam naturalmente; mudam por força da vontade (consciente ou inconsciente) dos utilizadores. Quanto maior for o grau de codificação ortográfica e ortolinguística numa comunidade, maior será a rigidez do sistema e maior a resistência à mudança, maior será o impacto de qualquer mudança no sistema (por mínima que seja). Só em culturas/sociedades com baixo índice de literacia e de textualização e sem centros fortes de difusão de cultura são tolerados e considerados normais os usos escriturais particulares, divergentes e facultativos. A estabilidade ortográfica é apanágio de sociedades culturalmente complexas e avançadas, com forte apego à sua tradição e identidade culturais.
Facto: os sistemas de escrita não são concebidos para superar as dificuldades dos aprendentes (das crianças em idade escolar ou dos analfabetos em geral), mas destinam-se, ao contrário, a utilizadores adultos, maturos e fluentes. Não há ortografias intrinsecamente fáceis ou simples, do ponto de vista do aprendente. Todas são de difícil aquisição e exigem um salto cognitivo. A aprendizagem da ortografia é um processo de longa duração que dá ao aprendente acesso à cultura alargada da comunidade em que se inscreve. As dificuldades iniciais da aprendizagem são amplamente compensadas pelas vantagens comunicacionais do conhecimento e domínio de uma ortografia estável e codificada.
Facto: o português europeu e o português do Brasil são conjuntos de variedades linguísticas muito distintas que se encontram num processo multissecular de divergência. Não é possível fazer regredir a História no sentido da uniformização e unificação linguísticas. Para todos os efeitos, as enormes diferenças fonético-fonológicas, morfológicas, sintácticas e lexicais que existem actualmente entre o português europeu e o português do Brasil põem de facto em causa a existência de uma “língua portuguesa comum” a nível global, e obrigam do ponto de vista do estudo e descrição a uma abordagem linguística que trate o português europeu e o português do Brasil como línguas funcionais distintas. A unidade da língua portuguesa no mundo é, no melhor dos cenários, um conceito ideológico (perfeitamente legítimo, aliás), no pior, um mito, um fantasma.
Se a unidade linguística entre Portugal e Brasil é uma abstracção sem valor ou aplicação práticas, a unidade ortográfica essa é, nos termos que actualmente se discute, um puro disparate: nenhum benefício real poderá resultar dos custos trementos que acarretará vestir o português europeu e português do Brasil com uma roupagem gráfica semelhante, dado que a intercompreensão plena entre falantes dos dois diassistemas não existe e a clivagem é cada vez mais acentuada no plano da oralidade.
O termo ‘língua portuguesa’, aplicado de forma geral ao conjunto da lusofonia — que não é, de facto, uma comunidade linguística, mas uma comunidade política e cultural alicerçada numa história comum — é um termo geral que abrange um conjunto de variedades linguísticas mais ou menos próximas (e com graus diversos de inteligibilidade mútua). Exprime também a continuidade histórica entre o português europeu do século XVI e as variedades portuguesas contemporâneas dele descendentes bem como o parentesco linguístico e cultural que existe entre as diversas comunidades lusófonas espalhadas pelo mundo. Como é comummente usado, não é um termo operativo da análise linguística, dado que nas diversas comunidades que compõem a lusofonia (muitas das quais são multilingues) não existe um sistema linguístico único partilhado. Corresponde ao que alguns linguistas designam de ‘língua histórica’, por oposição a ‘língua funcional’ (a língua que cada um nós usa quotidiana e coloquialmente).
Aliás, é mais correcto e mais produtivo falar-se da pluralidade das ‘lusofonias’ (que é factual) do que da unidade da ‘lusofonia’ (que é um mito ou, no mínimo, uma abstracção).
Facto: o português é uma língua internacional (desde pelo menos o fim da Idade Média), sem problemas de difusão ou promoção independentemente da forma como se escreva. Na Europa é língua oficial da União Europeia e língua de trabalho do Parlamento Europeu, em África é língua oficial de seis países multilingues (incluindo a Guiné Equatorial) e da Organização de Unidade Africana, na América é língua oficial do Brasil, da Mercosul (Mercado Comum do Sul) e da Organização dos Estados Ibero-Americanos.
Não é sério pensar-se ou proclamar-se que uma reforma ortográfica possa contribuir para a maior ou menor projecção internacional da língua (seja lá o que isso for, e tenha a importância que se lhe possa atribuir), quando a difusão à escala mundial do português antedata de muito a existência de uma ortografia portuguesa.
Convém pensar um pouco no que significa e implica “projecção internacional” e “prestígio internacional” da língua no linguajar dos políticos (da política e da língua): é que se o problema se resume a contar e a exibir milhões de falantes (face aos milhões de outras línguas), então está-se, no limite, a pensar na língua em termos imperiais, o que, no tempo em que vivemos, não faz qualquer sentido. Note-se, a propósito dos milhões que falam português no mundo, que a maioria dos mais de duzentos milhões de pessoas que supostamente são hoje luso-falantes é composta por indivíduos analfabetos ou com literacia reduzida, e que muitos desses milhões não são falantes nativos de nenhuma variedade de português. De acordo com estimativas diversas o português é a quinta, sexta, sétima ou oitava língua mais falada do mundo, a uma distância grande do inglês e do mandarim.
O exame de perto da realidade linguística de países em vias de desenvolvimento nos quais se usa como língua nacional ou veicular uma língua europeia, mostra que, por detrás das estimativas monolíticas que são habitualmente divulgadas, se esconde uma realidade complexa e multi-facetada que inclui, por exemplo, diversos graus de proficiência linguística. Assim, se é certo que o português é uma língua internacional (há séculos), não é absolutamente certo que os milhões de falantes de que se fala falem todos a mesma coisa e com o mesmo grau de competência.
Facto: não há nenhum argumento de carácter linguístico, pedagógico e cultural que justifique a adopção de mais uma reforma ortográfica em Portugal, quanto mais de uma reforma tão profunda como a que agora se discute. A ortografia do português europeu sofreu desafortunadamente ao longo do século XX diversas e sucessivas alterações, e continua, apesar disso, a ter problemas: a presente reforma não só não resolve os problemas existentes como cria problemas novos.
É tempo de se aceitar a ortografia como está, goste-se ou não dela. É tempo de se aceitar a estabilidade ortográfica como valor superior. Objectivamente, é-me, enquanto linguista e estudioso, absolutamente indiferente que se tirem os P’s e os C’s “mudos”, para não falar dos H’s iniciais inorgânicos, que também se podia ter tirado. Não me é indiferente, no entanto, a ligeireza com que o sistema grafémico da língua portuguesa tem sido tratado em Portugal, não me é indiferente a ausência de argumentos grafémicos e linguísticos sólidos para se reformar novamente a nossa ortografia, e não me é indiferente a instabilidade e a insegurança ortográficas introduzidas pelo Acordo Ortográfico. Ou seja, o facto de se poder alterar alguma coisa ou de se achar que se deve alterar não justifica por si só que se o faça: a ortografia não existe no vazio, e não é propriedade de linguistas, filólogos, políticos, academias, universidades, governos ou partidos.
Facto: se é certo que a generalidade dos argumentos de suposta base linguística a favor de uma nova reforma é facilmente contraditada, donde resulta que o Acordo Ortográfico se apoia exclusivamente em argumentos de base política (e económica), mais certo é que, mesmo com argumentos técnicos bons ou até excelentes, os valores da estabilidade e da continuidade culturais são incontornáveis e deveriam pesar mais.
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