sábado, 26 de julho de 2008

João Roque Dias - Que as comam eles!

Numa terra cujo nome não vem agora ao caso, havia – sempre houve – uma mercearia. O proprietário do estabelecimento, o Sr. António, sempre danado para o negócio, oferecia aos seus clientes de tudo e do melhor que podia encontrar. E se havia algo que levava os fregueses a fazerem bicha à sua porta, era o chouriço. Aquele chouriço que vinha direitinho das matanças de outras terras, todas vizinhas da sua mercearia. Era chegar e andar, que os fregueses não o deixavam ficar nas prateleiras por muito tempo. Depois, acho que por causa de um "brasileiro" que por lá viveu, o Sr. António começou também a vender "linguiça brasileira". Coisa fina. Diferente, mas também muito apreciada. Afinal, o pessoal do outro lado do mundo aprendeu a fazê-la com as receitas antigas de gentes das terras do lado de cá, a que foram acrescentando os seus gostos. Diferente, sim, mas com bom tempero. O Sr. António dizia até que só não vendia petróleo de Angola em garrafas, porque não o deixavam...

Com o negócio a medrar, o nosso merceeiro resolveu diversificar a oferta e, em espaço bem arranjado, abriu um restaurante. A Florência, cabo-verdiana de nascimento, mas portuguesa no coração e nos papéis, tomou conta da cozinha. Foi mais uma roda-viva lá na terra. Nas mesas sempre cheias comia-se, lado a lado, bacalhau com todos a preceito, cachupa de chorar por mais, moamba de lamber os dedos, picanha assada no melhor ponto e, para as sobremesas, a genial cozinheira preparava um leite-creme de fazer corar os anjos, mas também coisas que desencantava noutras paragens, como as cocadas do Brasil.

Um dia, acho que por inícios dos anos 90 do século passado, sem que se saiba bem porquê, alguns cozinheiros de países onde se fala e escreve o português – de modo tão variado como a comida que por lá se come – sentaram-se à mesa com o firme propósito, asseguravam eles, de uniformizar, por meio de um miraculoso acordo, o aspecto das comidas desses países. Foi o desassossego! Para acalmar os que não acreditaram em tal propósito (há sempre os "saudosistas" da comida tradicional), os cozinheiros-acordistas juraram piamente que só o aspecto dos pratos iria ser uniformizado, que não, que o sabor continuaria a ser o de cada um, que sim, que cada um poderia continuar a cozinhar com os seus próprios ingredientes, que obviamente, os cozinheiros artísticos poderiam continuar a empratar como quisessem, que, evidentemente, a coisa era absolutamente necessária para inundar o mundo inteiro com a comida portuguesa (então as pizzas italianas e os hambúrgueres americanos não o tinham feito?) e para as criancinhas (de 6 ou 7 anos, esclareceram até os cozinheiros-acordistas) poderem escolher mais facilmente os pratos nas ementas ilustradas das cantinas escolares e que a coisa se impunha mesmo, porque nos refeitórios das Nações Unidas andava tudo louco (juravam eles...), porque os portugueses e os brasileiros insistiam em pedir pratos diferentes, apesar de confeccionados com ingredientes muito parecidos, que o novo aspecto, depois de uniformizado, iria abrir as portas a uma política gastronómica a sério, e que não, que ninguém queria mudar os pratos, mas apenas o seu aspecto exterior, e porque sim, que sim, e porque sim senhor. Os que não viam na coisa vantagem, ou até piada alguma, continuavam a querer comer bacalhau a parecer bacalhau, picanha com cara de picanha e moamba que, só pelo aspecto, só podia ser moamba! Diziam até que o aspecto da comida faz também parte do seu paladar e que os olhos também comem! E avançaram com pareceres de gente entendida em coisas de comer a dizer que a ideia era disparatada. Qual quê? Alguns adeptos da nova salgalhada gastronómica começaram a chamar-lhes até “fundamentalistas” e “salazaristas”! Os cozinheiros-acordistas da tal comida de fusão, toda nouvelle, perderam a cabeça e, um a um, com os passaportes bem levantados acima das suas cabeças, gritaram, numa patética e ridícula profissão-de-fé: nós não somos os donos da comida! Nós não podemos obrigar (como se alguém alguma vez tivesse obrigado alguém...) os brasileiros a comer chouriço português, os portugueses a comer linguiça brasileira, os timorenses a comer galinha à moçambicana e os cabo-verdianos a comer moamba angolana. Temos que fundir isto tudo em pratos de aspecto unificado, em que todos os de fora podem mexer na panela de cada um dos de dentro. E até arranjaram uma regra muito simples (números sempre são números, não é?): quem tiver mais pessoas à mesa fica com o direito de mandar na cozinha de todos os outros! Quando passaram tudo a escrito, sim, que estes cozinheiros-acordistas gostam de escrever, sob o título “Acordo Gastronómico da Comida Portuguesa" a regra ficou ainda mais clara: quando a comida brasileira era diferente da portuguesa, os pratos poderiam, facultativamente, ser confeccionados à moda brasileira ou à moda portuguesa; mas quando a comida portuguesa era diferente da brasileira, os pratos teriam que ser apresentados à moda brasileira. Sobre a comida dos outros países, o acordo era mudo, cego e paralítico: que comessem a comida feita nas cozinhas brasileiras e portuguesas, para, depois, quem sabe, poderem olhar orgulhosos para a expansão de uma comida que, não sendo só deles, também podem chamar deles. Na regra dos milhões, os que são mais podem mexer nos tachos de todos. As virtualidades desta mixórdia repelente à vista e sensaborona na boca não são claras para ninguém, mas têm uma vantagem: como o Brasil quer um lugar de cozinheiro nos refeitórios das Nações Unidas, sempre se pode candidatar com um livro de receitas de “comida lusófona unificada”. Os outros países do mundo, que sempre gostaram de provar os sabores de todos nós, hão-de admitir o candidato para confeccionar a nova comida “fundida”, defendem os cozinheiros-acordistas! Sem esquecer, claro, a outra vantagem, essa mais domesticamente lusófona: acaba-se com as casas de pasto e os talhos que os portugueses mantêm cordatamente nos outros países que comem português e substituem-se por botequins e açougues brasileiros. Sim, dizem os cozinheiros do acordo, que isto não é só vosso e "eles" são muitos milhões a mais...

Na mercearia do Sr. António (o pobre anda até a pensar mudar a tabuleta da loja para Antônio, para não perder o trem da grande expansão do negócio que lhe prometeram...) vende-se agora uma “chouguiça” desenxabida, talvez por causa dos temperos tropicais, como manda a lei dos cozinheiros-acordistas! A cozinheira Florência está a dar em doida: tem que cozer a chanfana em leite de coco e servi-la com tucupi, a moamba tem que a fazer com óleo de oliva, os panados são agora preparados com farinha de rosca, a cachupa deve parecer-se com o cozido à portuguesa-moda-do-Recife e as sobremesas têm que levar sempre um toque de leite moça. O António e a Florência não perceberam ainda é como é que esta nova comida travestida e de fusão lhes vai aumentar o negócio a nível internacional e andam seriamente preocupados com os quase 100 000 comensais portugueses, outrora fiéis da boa mesa portuguesa, brasileira, cabo-verdiana, angolana, moçambicana e macaense, que já declararam que não irão pôr mais os pés no novo restaurante! Comidas daquelas? Que as comam eles!

João Roque Dias | Tradutor (CT)
www.jrdias.com


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A Petição Contra o Acordo Ortográfico continua aberta e disponível para assinatura. Conta hoje com 88 912 assinaturas.

Assine-a em www.ipetitions.com/petition/manifestolinguaportuguesa.
Enquanto há Língua, há esperança.

4 comentários:

Ramiro S. Osório disse...

REVISTA À PORTUGUESA: NÃO

Considero que a revista à portuguesa não é um meio de luta.
Antes do "sim" de Cavaco, já reclamara um planeamento estratégico para esta
luta.
Depois do "sim", cada minuto conta.
Providências cautelares?
Outras diligências jurídicas?
Resistência passiva.
Insubmissão civil.
Simultaneamente: publicação de contributos novos (que não sejam pois
variantes do déjà-vu).

Ana Paula Cruz disse...

Não sou linguísta, mas da semiologia...
Apesar disso sei que:

- a língua não muda por decreto, mas sim pela sua prática

- não vejo que alguma vez os Ingleses pudessem aceitar um acordo ortográfico com os EUA ou com a Austrália ou com o Zimbabwe; aceitam palavras como "Guy" dos EUA, ou mesmo o autraliano "Dude", mas claramente "bloke" mantém o carisma inabalável que um Bristish nunca negará. E duvido que alguma vez aceitem o "gonna/wanna do" em vez do "going/want to do"...

- Somemos a isto o facto de que (e a frase é célebre nestas minhas áreas) "a Linguagem recorta o pensamento", ou seja, formata a identidade, a forma de ler o real e mesmo a capacidade de pensar... e veremos que seremos reduzidos a uma identidade que não identifica nenhum tipo de linguiça ou enchido conhecido.

A minha pergunta é: se seguimos os outros países em tanta parvoíce, porque não seguir os anglo-saxónicos neste bom exemplo e deixarmos que a língua siga o rumo que ela própria está disposta a seguir?

Philinto Elysio disse...

Caro Ramiro Osório, a utilização de parábolas, imagens e metaphoras é uma forma antiga de ilustração do povo e de comunicação sapiencial.
Não se abespinhe. As medidas que reclama já outros as propuseram, e quem, sabe, já nelas estarão a trabalhar. Em vez de deixar interrogações, como quem espera que outrem se encarregue de "implementar" o que propõe, FAÇA. Faça, caro Osório: as providências, a insubmissão, as publicações, etc. Há muito trabalho a fazer no combate ao montro acordortográfico. E reconheça o direito e a validade de outros comunicarem com estilos discursivos distintos do seu. Apesar de ter sido banido como autor desse blog, continuo a receber os comentários que vão sendo postados e não podia deixar de enviar este reparo, dado que os primeiros e principais "meios de luta" são, e só podem ser, a tolerância e a razão. Não lhe parece? Seu. - P.

Anónimo disse...

Muito bom. Texto brilhante este que acabo de ler. Julgo ser pertinente o envio deste texto para o Exmo Sr Presidente da República. Com sorte, tem uma indigestão e volta atrás naquilo que defendeu.

Ana Melo