terça-feira, 8 de julho de 2008

A. M. Machado Pires - Tardiamente lastimáveis

Estar com o princípio de um acordo é uma coisa; subscrever este é outra. Divergir deste acordo não é nem ser “fundamentalista”, nem “patrioteiro”, nem querer estar “orgulhosamente sós”, coisa que, sem o “orgulhosamente”, nos está a suceder em muitos aspectos da vida nacional. O português tende a condenar, depreciar ou mesmo apontar à execração aquilo que pensam os que não pensam como ele. Uma espécie de cartesianismo egolátrico: cogito, ergo tenho razão!
Criar múltiplas facultatividades e alternativas, escrever ao sabor da tolerância ou da oralidade é semear a confusão entre os professores, os alunos e os estrangeiros que querem aprender com clareza a língua portuguesa. Porque muita coisa mudou ao longo do tempo, nem tudo pode mudar como se quer. Nem “por decreto”. Acaso têm muitos a consciência científico-linguística de que as línguas mudam, evoluem, “estropiam-se” segundo leis fisiológicas, usos que se consagram e só depois se reconhecem?
E as abstrusões resultantes da supressão do hífen em palavras compostas? E a falta de acentos, obrigando a depreender pelo contexto quando a língua sempre teve eficazes e precisos indicadores para o fazer? Amamos/amámos, ficamos/ficámos, etc. O opinante comum (com o devido respeito) favorável ao acordo saberá que á/a é/ê ó/ô são fonemas e o que isso comporta? E o brasileiro vai mesmo deixar de pôr o trema na linguiça, na linguística, no arguido?! Arguido em português não o tem: por isso já se ouviu pronunciar “arguído”! Sempre que se pode indicar, deixe-se ficar o indicador; antecipa-se a explicação e evita-se a calinada. "A secretaria secretaria o chefe todos os dias" . É repetição ou gralha? Logo se dirá que o contexto resolve. Mas antes que a cabeça reconheça pelo contexto, provavelmente já saiu mal lido ou
hesitado.
Os linguistas estão longe da unanimidade; os professores, os escritores, os políticos (estes nem sempre pelas melhores razões), o cidadão comum também hesitam. Então por que não reanalisar o acordo? Não ao “orgulhosamente sós”? Decerto… Mas pior seria o tardiamente lastimados. Uma má obra pública arruína temporariamente o erário público. Um atentado à língua mina duradoiramente um património de um Povo. Irremediavelmente, porque a evolução da língua não tem retorno.
O orgulho de posições deve dar lugar a uma serena análise enquanto é tempo. Citando uma antiga aluna: a fórmula da sabedoria é “uma colherinha de orgulho e duas de humildade”.

A. M. Machado Pires, Ex-reitor da Universidade dos Açores / Filólogo e Historiador da Cultura

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